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terça-feira, 22 de outubro de 2013
segunda-feira, 2 de janeiro de 2012
Frei Luis de Sousa
Almeida Garret: Frei Luís de Sousa
Breve Análise
1. Acção dramática
Frei Luís de Sousa contém o drama que se abate sobre a família de Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena de Vilhena. As apreensões e pressentimentos de Madalena de que a paz e a felicidade familiar possam estar em perigo tornam-se gradualmente numa realidade. O incêndio no final do Acto I permite uma mutação dos acontecimentos e precipita a tensão dramática. E no palácio que fora de D. João de Portugal, a acção atinge o seu clímax, quer pelas recordações de imagens e de vivências, quer pela possibilidade que dá ao Romeiro de reconhecer a sua antiga casa e de se identificar a Frei Jorge.
O Acto I inicia-se com Madalena a repetir os versos d'Os Lusíadas:
- "Naquele engano d'alma ledo e cego,
que a fortuna não deixa durar muito…"
As reflexões que se seguem transmitem, de forma explícita um presságio da desgraça que irá acontecer. Obedecendo à lógica do teatro clássico desenvolve a intriga de forma a que tudo culmine num desfecho dramático, cheio de intensidade: morte física de Maria e a morte para o mundo de Manuel e Madalena.
2. Do drama clássico ao drama romântico
Se se pretender fazer uma aproximação entre esta obra e a tragédia clássica, poder-se-á dizer que é possível encontrar quase todos os elementos da tragédia, embora nem sempre obedeça à sua estruturação objectiva.
A hybris é o desafio, o crime do excesso e do ultraje. D. Madalena não comete um crime propriamente na acção, mas sabemos que ele existiu pela confissão a Frei Jorge de que ainda em vida de D. João de Portugal amou Manuel de Sousa, apesar de guardar fidelidade ao marido. O crime estava no seu coração, na sua mente, embora não fosse explícito como entre os clássicos.
Manuel de Sousa Coutinho também comete a sua hybris ao incendiar o palácio para não receber os governadores. A hybris manifesta-se em muitas outras atitudes das personagens.
O conflito que nasce da hybris desenvolve-se através da peripécia (súbita alteração dos acontecimentos que modifica a acção e conduz ao desfecho), do reconhecimento (agnórise) imprevisto que provoca a catástrofe. O desencadear da acção dá-nos conta do sofrimento (páthos) que se intensifica (climax) e conduz ao desenlace. O sofrimento age sobre os espectadores, através dos sentimentos de terror e de piedade, para purificar as paixões (catarse). A reflexão catártica é também dada pelas palavras do Prior, quando na última fala afirma: "Meus irmãos, Deus aflige neste mundo àqueles que ama. A coroa da glória não se dá senão no céu".
Tal como na tragédia clássica, também o fatalismo é uma presença constante. O destino acompanha todos os momentos da vida das personagens, apresentando-se como um força que as arrasta de forma cega para a desgraça. É ele que não deixa que a felicidade daquela família possa durar muito.
Garrett, recorrendo a muitos elementos da tragédia clássica, constrói um drama romântico, definido pela valorização dos sentimentos humanos das personagens; pela tentativa de racionalmente negar a crença no destino, mas psicologicamente deixar-se afectar por pressentimentos e acreditar no sebastianismo; pelo uso da prosa em substituição do verso e pela utilização de uma linguagem mais próxima da realidade vivida pelas personagens; sem preocupações excessivas com algumas regras, como a presença do coro ou a obediência perfeita à lei das três unidades (acção, tempo e espaço).
3. Tempo
A acção dramática de Frei Luis de Sousa acontece em 1599, durante o domínio filipino, 21 anos após a batalha de Alcácer-Quibir. Esta aconteceu a 4 de Agosto de 1578.
"A que se apega esta vossa credulidade de sete… e hoje mais catorze… vinte e un anos?", pergunta D. Madalena a Telmo (Acto I, cena 11).
"Vivemos seguros, em paz e felizes… há catorze anos" (1, cena 11).
"Faz hoje anos que… que casei a primeira vez, faz anos que se perdeu el-rei D. Sebastião, e faz anos também que… vi pela primeira vez a Manuel de Sousa", afirma D. Madalena (Il. cena X).
"Morei lá vinte anos cumpridos" (…) "faz hoje um ano… quando me libertaram", diz o Romeiro (Il. cena XIV).
A acção reporta-se ao final do século XVI, embora a descrição do cenário do Acto I se refira à "elegância" portuguesa dos princípios do século XVII.
O texto é, porém, escrito no século XIX, acontecendo a primeira representação em 1843.
4. Personagens
D. Madalena de Vilhena é a primeira personagem que aparece na obra, mas pode-se afirmar que toda a familia tem um relevo significativo. São as relações entre esposos, pais e filha, o criado e os seus amos ou mesmo o apoio de Frei Jorge que estão em causa. Um drama abate-se sobre esta família e enquanto Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena se refugiam na vida religiosa, Maria morre como vítima inocente.
D. Madalena tinha 17 anos quando D. João de Portugal desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir. Durante 7 anos procurou-o. Há catorze anos que vive com Manuel de Sousa Coutinho. Tem agora 38 anos (17 + 21). Mulher bela, de carácter nobre, vive uma felicidade efémera, pressentindo a desventura e a tragédia do seu amor. Racionalmente, não acredita no mito sebastianista que Ihe pode trazer D. João de Portugal, mas teme a possibilidade da sua vinda. E com medo que a encontramos a reflectir sobre os versos de Camões e a sentir, como que em pesadelo, a ideia de que a sobrevivência de D. João destrua a felicidade da sua família. No imaginário de D. Madalena, a apreensão torna-se pressentimento, dor e angústia. É neste terror que se vê na necessidade de voltar para a habitação onde com ele viveu.
Manuel de Sousa Coutinho (mais tarde Frei Luis de Sousa) é um nobre e honrado fidalgo, que queima o seu próprio palácio, para não receber os governadores. Embora apresente a razão a dominar os sentimentos, por vezes, estes sobrepõem-se quando se preocupa com a doença da filha. É um bom pai e um bom marido.
Maria de Noronha tem 13 anos, é uma menina bela, mas frágil, com tuberculose, e acredita com fervor que D. Sebastião regressará. Tem uma grande curiosidade e espírito idealista. Ao pressentir a hipótese de ser filha ilegítima sofre moralmente. Será ela a vítima sacrificada no drama.
Telmo Pais, o velho criado, confidente privilegiado, define-se pela lealdade e fidelidade. Não quer magoar nem pretende a desgraça da família de D. Madalena e Manuel. Mas como verdade recorrente no mito sebastianista, acredita que D. João de Portugal há-de regressar. No fim, acaba por trair um pouco a lealdade de escudeiro pelo amor que o une à filha daquele casal, D. Maria de Noronha. Representa um pouco o papel de coro da tragédia grega, com os seus diálogos, os seus agoiros ou os seus apartes.
O Romeiro apresenta-se como um peregrino, mas é o próprio D. João de Portugal. Os vinte anos de cativeiro transformaram-no e já nem a mulher o reconhece. D. João, de espectro invisível na imaginação das personagens, vai lentamente adquirindo contornos até se tornar na figura do Romeiro que se identifica como "Ninguém". O seu fantasma paira sobre a felicidade daquele lar como uma ameaça trágica. E o sonho torna-se realidade.
Frei Jorge Coutinho, irmão de Manuel de Sousa, amigo da família e confidente nas horas de angústia, ouve a confissão angustiada de D. Madalena. Vai ter um papel importante na identificação do Romeiro, que na sua presença indicará o quadro de D. João de Portugal.
5. Cenário
O Acto I passa-se numa "câmara antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegancia dos principios do século XVII", no palácio de Manuel de Sousa Coutinho, em Almada. Neste espaço elegante parece brilhar uma felicidade, que será, apenas, aparente.
O Acto II acontece "no palácio que fora de D João de Portugal, em Almada, salão antigo, de gosto melancólico e pesado, com grandes retratos de familia…". As evocações do passado e a melancolia prenunciam a desgraça fatal.
O Acto lll passa-se na capela, que se situa na "parte baixa do palácio de D. João de Portugal". "É um casarão vasto sem ornato algum". O espaço denuncia o fim das preocupações materiais. Os bens do mundo são abandonados.
6. A Atmosfera
Há ao longo da intriga dramática uma atmosfera psicológica do sebastianismo com a crença no regresso do monarca desaparecido e a crença no regresso da liberdade. Telmo Pais é quem melhor alimenta estas crenças, mas Maria mostra-se a sua melhor seguidora.
Percebe-se também uma atmosfera de superstição, nomeadamente desenvolvida em redor de D Madalena.
7. Simbologia
Vários elementos estão carregados de simbologia, muitas vezes a pressagiar o desenrolar da acção e a desgraça das personagens. Apenas como referência, podemos encontrar algumas situações e dados simbólicos:
- A leitura dos versos de Camões referem-se ao trágico fim dos amores de D. Inês de Castro que, como D. Madalena, também vivia uma felicidade aparente quando a desgraça se abateu.
- O tempo dos principais momentos da acção sugerem o dia aziago: sexta-feira, fim da tarde e noite (Acto I), sexta-feira, tarde (Acto II), sexta-feira, alta noite (Acto lll); e à sexta-feira D. Madalena casou-se pela primeira vez; à sexta-feira viu Manuel pela primeira vez; à sexta-feira dá-se o regresso de D. João de Portugal; à sexta-feira morreu D. Sebastião, vinte e um anos antes.
- A numerologia (1) parece ter sido escolhida intencionalmente. Madalena casou 7 anos depois de D. João haver desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir; há 14 anos que vive com Manuel de Sousa Coutinho; a desgraça, com o aparecimento do Romeiro, sucede 21 anos depois da batalha (21=3x7). 0 número 7 é um número primo que se liga ao ciclo lunar (cada fase da Lua dura cerca de sete dias) e ao ciclo vital (as células humanas renovam-se de sete em sete anos), representa o descanso no fim da criação e pode-se encontrar em muitas representações da vida, do universo, do homem ou da religião; o número 7 indica o fim de um ciclo periódico. O número 3 é o número da criação e representa o círculo perfeito. Exprime o percurso da vida: nascimento, crescimento e morte. O número 21 corresponde a 3x7, ou seja, ao nascimento de uma nova realidade (7 anos foi o ciclo da busca de notícias sobre D. João de Portugal e o descanso após tanta procura); 14 anos foi o tempo de vida com Manuel de Sousa (2x7, o crescimento de uma dupla felicidade: como esposa de Manuel e como mãe de Maria; 14 é gerado por 1+4=5, apresentando-se como símbolo da relação sexual, do acto de amor); 21 anos completa a tríade de 7 apresentando-se como a morte, como o encerrar do círculo dos 3 ciclos periódicos O número 7 aparece, por vezes, a significar destino, fatalidade (imagem do completar obrigatório do ciclo da vida), enquanto o 3 indica perfeição; o 21 significa, então, a fatalidade perfeita.
- Maria vive apenas 13 anos. Na crença popular o 13 indica azar. Embora como número ímpar deva apresentar uma conotação positiva, em numerologia é gerado pelo 1+3=4, um número par, de influências negativas, que representa limites naturais. Maria vê limitados os seus momentos de vida.
8. Acção Trágica
Elementos trágicos | Hybris (o desafio) | Agón (o conflito) | Pathos (o sofrimento) | Katastrophé (a catástrofe) |
D. Madalena de Vilhena | contra as leis e os direitos da família: adultério no coração consumação pelo casamento com Manuel profanação de um sacramento bigamia | interior, de consciência contínuo crescente gerador de conflitos: com D. Manuel com D. João com Maria com Telmo | por causa do adultério pela incerteza da sorte do primeiro marido violento pela volta ao palácio do primeiro marido cruel após conhecimento da existência do primeiro marido: pela perda do marido pela perda de Maria | causada pelo regresso de D. João - morte psicológica: separação do marido profissão religiosa salvação pela purificação: irmã Sóror Madalena das Chagas |
Manuel S. Coutinho | revolta contra as autoridades de Lisboa desafia o destino ao incendiar o palácio recusa o perdão inconscientemente participante da hybris de sua esposa | não tem conflito de consciência não entra em conflito com as outras personagens a sua hybris desencadeia e agudiza os conflitos das outras personagens | sofre a angústia pela situação da sua mulher sofre a angústia pela situação presente e futura da filha | morte psicológica: separação da esposa separação do mundo profissão religiosa glória futura de escritor: Frei Luís de Sousa: glória de santo |
D. João de Portugal | abandona a família não dá notícias da sua existência aparece quando todos o julgavam morto | não tem conflito alimenta os conflitos dos outros agudiza todos os conflitos com o seu regresso | sofre o esquecimento a que foi votado sofre pelo casamento da sua mulher sofre por não poder travar a marcha do destino | morte psicológica: separação da mulher a situação irremediável do anonimato |
D. Maria de Noronha | revolta contra a profissão religiosa dos pais revolta contra D. João de Portugal convida os pais a mentir | não tem conflito entra em conflito com: sua mãe seu pai Telmo D. João de Portugal | sofre fisicamente: tuberculose sofre psicologicamente: não obtém resposta a muitos agoiros vergonha da ilegitimidade | morre fisicamente vai para o céu |
Telmo Pais | afeiçoa-se a Maria deseja que D. João de Portugal tivesse morrido | conflito de consciência conflito com outras personagens: com D. Madalena com D. Manuel com Maria com D. João de Portugal | sofre pela dúvida constante que o assalta acerca da morte de D. João de Portugal sofre hesitando entre a fidelidade a D. João e a D. Manuel sofre a situação de Maria | não poderá resistir a tantos desgostos |
9. Estrutura dramática
Estrutura Interna | Estrutura Externa |
Exposição | Acto I - cenas I, II, III e IV |
Conflito | Acto I - cenas V-XII Acto II Acto III - cenas I-IX |
Desenlace | Acto III - cenas X-XII |
Acto I | cenas I-IV cenas V-VIII cenas IX-XII | Informações sobre o passado das personagens Preparação da acção - decisão dos governadores e decisão de incendiar o palácio Acção: incêndio do palácio |
Acto II | cenas I-III cenas IV-VIII cenas IX-XV | Informações sobre o que se passou depois do incêndio Preparação da acção: ida de Manuel de Sousa Coutinho a Lisboa Acção: chegada do Romeiro |
Acto III | cena I cenas II-IX cenas X-XII | Informações sobre a solução adoptada Preparação do desenlace Desenlace |
Personalidade de Telmo
«Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.
O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. [...]
Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade, mesmo sem acontecimentos. Quando estes começam a desencadear-se, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso, o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.
Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor, mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.
O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:
- Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.»
«Esta é uma verdadeira tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as possa haver sobre factos e pessoas comparativamente recentes. [...]
Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado contudo que me atreva a dar a uma composição em prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas as composições poéticas.
O que escrevi em prosa, pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingénuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. mas sempre havia de aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei porque é verdade - repugnava-me também pôr na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de imitar o grande modelo; mas antes isso, do que fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua.
Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico.
[...]
Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo quanto a severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!»
Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa (lida em 6 de Maio de 1843 - nota de Garrett)
«É, pois, a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do [drama], [imitação que se efectua] não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.
[...]
Como esta imitação é executada por actores, em primeiro lugar o espectáculo cénico há-de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopeia e a elocução, pois estes sãos os meios pelos quais os actores efectuam a imitação. [...]
E como a tragédia é a imitação de uma acção e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de carácter e pensamento que nós qualificamos as acções), daí vem por consequência o serem duas causas naturais que determinam as acções: pensamento e carácter; e, nas acções [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de acções; e, por "mito", entendo a composição dos actos; por "carácter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão.
[...]
Porém, o elemento mais importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de acções e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na acção, e a própria finalidade da vida é uma acção, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao carácter, mas são bem ou mal-aventurados pelas acções que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efectuar certas acções; por isso, as acções e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.
[...]
Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma acção e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.
Aristóteles, Poética, 49 b / 50 b
«Garrett disse na Memória ao Conservatório que o conteúdo do Frei Luís de Sousa tem todas as características de uma tragédia. No entanto, chama-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal da tragédia:
não é em verso, mas em prosa;não tem cinco actos;não respeita as unidades de tempo e de lugar;não tem assunto antigo.
Sendo assim, quase podemos dizer que é uma tragédia, quanto ao assunto. Na verdade,
- o número de personagens é diminuto;
- Madalena, casando sem ter a certeza do seu estado livre, e Manuel de Sousa, incendiando o palácio, desafiam as prepotências divinas e humanas (a hibris);
- contra essa fatalidade os protagonistas não podem lutar (se pudessem e assim conseguissem mudar o rumo dos acontecimentos, a peça seria um drama); limitam-se a aguardar, impotentes e cheios de ansiedade, o desfecho que se afigura cada vez mais pavoroso;
- há um reconhecimento: a identificação do Romeiro (a agnorisis);
- Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma palavra de conforto, parecem o coro grego.
Mas, por outro lado, a peça está a transbordar de romantismo:
- a crença no sebastianismo;
- a crença no aparecimento dos mortos, em Telmo;
- a crença em agouros, em dias aziagos, em superstições;
- as visões de Maria, os seus sonhos, o seu idealismo patriótico;
- o «titanismo» de Manuel de Sousa incendiando a casa só para que os Governadores do Reino a não utilizassem;
- a atitude que Maria toma no final da peça ao insurgir-se contra a lei do matrimónio uno e indissolúvel, que força os pais à separação e lhos rouba.
Se a isto acrescentarmos certas características formais, como
- o uso da prosa;
- a divisão em três actos;
- o estilo todo, do princípio ao fim,
teremos que concluir que é um drama romântico, com lances de tragédia apenas no conteúdo.»
Barreiros, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. II
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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
Almeida Garrett
Iniciador do Romantismo, refundador do teatro português, criador do lirismo moderno, criador da prosa moderna, jornalista, político, legislador, Garrett é um exemplo de aliança inseparável entre o homem político e o escritor, o cidadão e o poeta. É considerado, por muitos autores, como o escritor português mais completo de todo o século XIX, porquanto nos deixou obras-primas na poesia, no teatro e na prosa, inovando a escrita e a composição em cada um destes géneros literários.
João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett nasceu em 1799 no Porto, no seio de uma família burguesa, que se refugia em 1809 na ilha Terceira, a fim de escapar à segunda invasão francesa. Nos Açores, recebe uma educação clássica e iluminista (Voltaire e Rousseau, que lhe ensinam o valor da Liberdade), orientada pelo tio, Frei Alexandre da Conceição, Bispo de Angra, ele próprio escritor. Em 1817, vai estudar Leis para Coimbra, foco de fermentação das ideias liberais. Em 1820, finalista em Coimbra, recebe com entusiasmo e otimismo a notícia da revolução liberal. Em 1821, representa o Catão e publica em Coimbra O Retrato de Vénus, obras marcadas ainda por um estilo arcádico. Arcádicos são igualmente os poemas que escreve durante este período e que serão insertos, em 1829, na Lírica de João Mínimo. Em 1822, é nomeado funcionário do Ministério do Reino, casa com Luísa Midosi e funda o jornal para senhoras O Toucador. Em 1823, com a reação miguelista da Vila-Francada, é obrigado a exilar-se em Inglaterra, onde inicia o estudo do Romantismo (inglês), e depois em França, onde se torna correspondente de uma filial da casa Lafitte. Contacta então com a literatura romântica (Byron, Lamartine, Vítor Hugo, Schlegel, Walter Scott, Mme de Staël), redescobre Shakespeare e, influenciado pelas recolhas de cancioneiros populares, começa a preparar o Romanceiro. Em 1825 e 1826, publica em Paris os poemas Camões e Dona Branca, primeiras obras portuguesas de cunho romântico, fruto da metamorfose estética em si operada pelas novas leituras. Em 1826, publica também o Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa, como introdução à antologia de poesia portuguesa Parnaso Lusitano. Em 1826, durante um período de tréguas, regressa a Portugal e mostra-se confiante na Carta Constitucional acordada entre D. Pedro e D. Miguel, mais moderada que o programa vintista. Dedica-se ao jornalismo político nos jornais O Português e O Cronista. Em 1828, depois da retoma do poder absoluto por parte de D. Miguel, exila-se novamente em Inglaterra. Em 1829, publica em Londres a Lírica de João Mínimo e o tratado Da Educação. Em 1830, publica o tratado político Portugal na Balança da Europa, onde analisa a história da crise portuguesa e exorta à unidade e à moderação. Em 1832, parte para a ilha Terceira, incorpora-se no exército liberal, e participa no desembarque em Mindelo. Escreve, durante o cerco do Porto, o romance histórico O Arco de Santana e colabora com Mouzinho da Silveira nas reformas administrativas. Em 1834, é nomeado cônsul-geral em Bruxelas, numa espécie de terceiro exílio motivado pelo cada vez maior desencanto em relação à política portuguesa (a divisão dos liberais, a corrida aos cargos públicos), onde contacta com a língua e a literatura alemãs (Herder, Schiller e Goethe). Também exerceu funções diplomáticas em Londres e em Paris. Em 1836, regressa a Lisboa, separa-se de Luísa Midosi e funda o jornal O Português Constitucional. No mesmo ano, após a Revolução de setembro, é incumbido pelo governo setembrista de Passos Manuel da organização do Teatro Nacional. Nesse âmbito, desenvolverá uma ação notável, dirigindo a Inspeção Geral dos Teatros e o Conservatório de Arte Dramática, intervindo no projeto do futuro Teatro Nacional de D. Maria II e escrevendo ao longo dos anos seguintes todo um repertório dramático nacional: Um Auto de Gil Vicente (1838), Dona Filipa de Vilhena (1840), O Alfageme de Santarém (1842), Frei Luís de Sousa (1843). É por esta altura que inicia um romance com Adelaide Deville, que morrerá em 1841, deixando-lhe uma filha (episódio que inspirará o Frei Luís de Sousa). Em 1838, torna-se deputado da Assembleia Constituinte e membro da comissão de reforma do Código Administrativo. No ano de 1843 publica o 1.º volume do Romanceiro, uma recolha de poesias de tradição popular. Em 1845, lança o livro de poesias líricas Flores sem Fruto e o 1.º volume do romance histórico O Arco de Sant'Ana. Em 1846, sai em volume o "inclassificável" livro das Viagens na Minha Terra, publicado um ano antes em folhetim na Revista Universal Lisbonense. Com este livro, a crítica considera iniciada a prosa moderna em Portugal. Em 1851, depois de um período de distanciamento face à vida política, regressa com a Regeneração, movimento que prometia conciliação e progresso. Nesse ano, funda o jornal A Regeneração, aceita o título de visconde e reassume o seu papel de deputado, colaborando na proposta de revisão da Carta. Em 1852, torna-se, por pouco tempo, ministro dos Negócios Estrangeiros. Em 1853, publica o livro de poesias líricas Folhas Caídas, recebido com algum escândalo: o poeta era, na época, uma figura pública respeitável (deputado, ministro, visconde), que se atrevia a cantar o amor desafiando todas as convenções, e muitos souberam ver na obra ecos da paixão do autor pela viscondessa da Luz, Rosa de Montufar. Em 1854, morre em Lisboa, aos cinquenta e cinco anos.
João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett nasceu em 1799 no Porto, no seio de uma família burguesa, que se refugia em 1809 na ilha Terceira, a fim de escapar à segunda invasão francesa. Nos Açores, recebe uma educação clássica e iluminista (Voltaire e Rousseau, que lhe ensinam o valor da Liberdade), orientada pelo tio, Frei Alexandre da Conceição, Bispo de Angra, ele próprio escritor. Em 1817, vai estudar Leis para Coimbra, foco de fermentação das ideias liberais. Em 1820, finalista em Coimbra, recebe com entusiasmo e otimismo a notícia da revolução liberal. Em 1821, representa o Catão e publica em Coimbra O Retrato de Vénus, obras marcadas ainda por um estilo arcádico. Arcádicos são igualmente os poemas que escreve durante este período e que serão insertos, em 1829, na Lírica de João Mínimo. Em 1822, é nomeado funcionário do Ministério do Reino, casa com Luísa Midosi e funda o jornal para senhoras O Toucador. Em 1823, com a reação miguelista da Vila-Francada, é obrigado a exilar-se em Inglaterra, onde inicia o estudo do Romantismo (inglês), e depois em França, onde se torna correspondente de uma filial da casa Lafitte. Contacta então com a literatura romântica (Byron, Lamartine, Vítor Hugo, Schlegel, Walter Scott, Mme de Staël), redescobre Shakespeare e, influenciado pelas recolhas de cancioneiros populares, começa a preparar o Romanceiro. Em 1825 e 1826, publica em Paris os poemas Camões e Dona Branca, primeiras obras portuguesas de cunho romântico, fruto da metamorfose estética em si operada pelas novas leituras. Em 1826, publica também o Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa, como introdução à antologia de poesia portuguesa Parnaso Lusitano. Em 1826, durante um período de tréguas, regressa a Portugal e mostra-se confiante na Carta Constitucional acordada entre D. Pedro e D. Miguel, mais moderada que o programa vintista. Dedica-se ao jornalismo político nos jornais O Português e O Cronista. Em 1828, depois da retoma do poder absoluto por parte de D. Miguel, exila-se novamente em Inglaterra. Em 1829, publica em Londres a Lírica de João Mínimo e o tratado Da Educação. Em 1830, publica o tratado político Portugal na Balança da Europa, onde analisa a história da crise portuguesa e exorta à unidade e à moderação. Em 1832, parte para a ilha Terceira, incorpora-se no exército liberal, e participa no desembarque em Mindelo. Escreve, durante o cerco do Porto, o romance histórico O Arco de Santana e colabora com Mouzinho da Silveira nas reformas administrativas. Em 1834, é nomeado cônsul-geral em Bruxelas, numa espécie de terceiro exílio motivado pelo cada vez maior desencanto em relação à política portuguesa (a divisão dos liberais, a corrida aos cargos públicos), onde contacta com a língua e a literatura alemãs (Herder, Schiller e Goethe). Também exerceu funções diplomáticas em Londres e em Paris. Em 1836, regressa a Lisboa, separa-se de Luísa Midosi e funda o jornal O Português Constitucional. No mesmo ano, após a Revolução de setembro, é incumbido pelo governo setembrista de Passos Manuel da organização do Teatro Nacional. Nesse âmbito, desenvolverá uma ação notável, dirigindo a Inspeção Geral dos Teatros e o Conservatório de Arte Dramática, intervindo no projeto do futuro Teatro Nacional de D. Maria II e escrevendo ao longo dos anos seguintes todo um repertório dramático nacional: Um Auto de Gil Vicente (1838), Dona Filipa de Vilhena (1840), O Alfageme de Santarém (1842), Frei Luís de Sousa (1843). É por esta altura que inicia um romance com Adelaide Deville, que morrerá em 1841, deixando-lhe uma filha (episódio que inspirará o Frei Luís de Sousa). Em 1838, torna-se deputado da Assembleia Constituinte e membro da comissão de reforma do Código Administrativo. No ano de 1843 publica o 1.º volume do Romanceiro, uma recolha de poesias de tradição popular. Em 1845, lança o livro de poesias líricas Flores sem Fruto e o 1.º volume do romance histórico O Arco de Sant'Ana. Em 1846, sai em volume o "inclassificável" livro das Viagens na Minha Terra, publicado um ano antes em folhetim na Revista Universal Lisbonense. Com este livro, a crítica considera iniciada a prosa moderna em Portugal. Em 1851, depois de um período de distanciamento face à vida política, regressa com a Regeneração, movimento que prometia conciliação e progresso. Nesse ano, funda o jornal A Regeneração, aceita o título de visconde e reassume o seu papel de deputado, colaborando na proposta de revisão da Carta. Em 1852, torna-se, por pouco tempo, ministro dos Negócios Estrangeiros. Em 1853, publica o livro de poesias líricas Folhas Caídas, recebido com algum escândalo: o poeta era, na época, uma figura pública respeitável (deputado, ministro, visconde), que se atrevia a cantar o amor desafiando todas as convenções, e muitos souberam ver na obra ecos da paixão do autor pela viscondessa da Luz, Rosa de Montufar. Em 1854, morre em Lisboa, aos cinquenta e cinco anos.
Em 1999 comemorou-se o Bicentenário do nascimento de Almeida Garrett, com a realização de conferências, publicações das suas obras, espetáculos, atividades escolares, exposições, entre outros eventos.
Almeida Garrett. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. [Consult. 2011-12-30].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$almeida-garrett,2>.
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