terça-feira, 17 de abril de 2012

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entrevista a Marco Antonio de la Parra

Entrevista com Marco Antonio de la Parra


Marco Antônio de la Parra em POA


Entrevista com o dramaturgo chileno Marco Antonio de la Parra, autor do texto latino-americano mais encenado no mundo: A secreta obscenidade de cada dia, um diálogo imaginário entre Freud e Marx. 

Um chileno com olhos de Chekhov

Durante oficina na Faap, Marco Antonio de la Parra discorre sobre coisas ´aparentemente irrelevantes´, mas, para o dramaturgo, é so ´teatralidade menor´

Entrevista
SÃO PAULO - Marco Antonio de la Parra recebe a reportagem do Estado no saguão do Teatro Faap na terça-feira seguinte ao fim de semana da estréia de sua peça O Continente Negro . Está ali para ministrar uma oficina de dramaturgia. Permite que se acompanhe o segundo dia de trabalho, mas avisa à repórter e ao fotógrafo: “Vocês podem entrar, mas nenhuma palavra, silêncio.” E explica como será o trabalho.

Na véspera, o primeiro dos três dias de duração da oficina, ele pedira a todos os participantes que escrevessem em folhas separadas duas cenas distintas: uma bem banal, outra trágica. “Ações simples, por exemplo, ela vai até a janela. Importante que sejam no presente e sem identificação do autor, em letra de imprensa.” Ao fim do dia, os papéis foram misturados. Cada um recebeu duas cenas diferentes, escritas por outros. O dever de casa para o dia seguinte: trazer para a sala objetos variados para criar as cenas recebidas. “Sem palavras, hoje quero apenas imagens. Amanhã será o dia de juntar tudo. Aí teremos um pequeno festival de cenas curtas.”

Na sala já esperam alguns participantes, entre eles Yara de Novaes e André Cortez, respectivamente atriz e cenógrafo de O Continente Negro, e Fernanda Almeida, operadora de luz de BR3 do Teatro da Vertigem. Mochilas, bolsas, um tripé de máquina fotográfica, gravadores, bonecos, panos, muitos são os objetos espalhados.

Desde a primeira criação, justamente de Fernanda, aparecem elementos como rituais, cânticos e velas. Essas vão aparecer outras vezes, assim como crianças abandonadas ou violadas, corpos mutilados, cidades congestionadas e violentas. “Em certas oficinas, além da cena banal e trágica, peço um mito. Não pedi aqui e nem seria preciso - o elemento religioso apareceu com força”, observou la Parra, ao fim do dia.

Houve uma tendência ao figurativo e uma profusão de imagens. E você, claramente, pedia síntese e sugestão. É sempre assim?

Houve uma tendência ao barroco. Isso varia. Na Cidade do México, no primeiro dia foi terrível, muitas imagens, mas as sínteses, no último dia, foram muito fortes. Na Argentina, são sintéticos nas imagens, mas não nas palavras, o texto comanda. Em Monterrey, no México, dei uma oficina em que a síntese predominou, mas porque havia muitos artistas de teatro de bonecos. Na Espanha são tímidos, se soltam pouco. Eu prefiro que se soltem, sejam barrocos, porque quando chegamos à síntese, ela é mais forte. Isso certamente vai acontecer amanhã.

Havia ainda a dificuldade em mudar o ponto de vista. Se um bonequinho era colocado sobre uma mesa, a tendência era sempre olhá-lo de frente, por mais que você falasse: olhem por vários ângulos.

Sim, por exemplo, foi construída essa imensa cidade, cheia de bonecos e ruas feitas de sal. Seria mais interessante tirar todos os bonecos e apenas caminhar pelas ruas. Tentei, mas isso não aconteceu. É difícil romper a Gestalt. Há mais um agravante. O material trabalhado aqui é muito doloroso, porque pedi experiência pessoal. Apareceu muito abuso infantil, perda de inocência, violência interconjugal. E o elemento religioso, muitas velas.

Sempre que se trabalha sobre o pessoal, a tendência é aparecer primeiro o mais óbvio, o senso comum. No entanto, o trabalho artístico é justamente fugir dele, não?

Sim, mas há um momento em que temos de ver quais lugares-comuns vamos visitar. Porque o trabalho artístico passa pelos lugares-comuns. Não se pode evitar. É preciso reconhecê-los. Chekhov os visitava. Em O Continente Negro, visito os lugares-comuns.

Escrevi trabalhando com três atores de televisão muito conhecidos. Depois quis que os dirigisse uma mulher, porque é uma obra muito feminina. Queríamos fazer realismo, mas não televisão. Então, o primeiro trabalho foi cortar as cenas que a TV usaria. As dramáticas, as intensas, aquelas que todo mundo entenderia o que estava acontecendo. E deixamos as cenas de sobra, o que iria para o lixo. A peça é feita de pedaços de telenovela. Faltam 50%. Sempre falta um pedaço. É uma obra muito psicanalítica.

Você é formado em psiquiatria, não?

Sim. E nessa peça trabalho femininamente sobre o que Lacan chama a falta, sobre o que está castrado. Os personagens falam de amor, mas as cenas amorosas não estão. Eu poderia perfeitamente contar O Continente Negro como uma telenovela, porque ela passa pelos lugares-comuns, só que eles não estão ali. É uma obra fantasma. Em neurologia, sabe-se que se amputam uma perna, o paciente segue sentindo a perna. Nessa peça, faltam fragmentos que, no entanto, estão ali, como fantasmas. Tocamos, emocionalmente, sobre o que está perdido. É também um peça feminina porque faz uma elipse sobre as histórias. Contar direto é uma atitude masculina. As mulheres fazem elipses, vêem os detalhes; nós, homens, nos desesperamos, e perdemos com isso. A mulher vê de perfil, por isso ela sabe que está sendo olhada. Os homens, não.

No prefácio, você diz que a peça tangencia clichês e, para escapar disso, deve ser encenada com teatralidade menor. Pode explicar?

Uma interpretação sem primeiro plano, o que não funciona no cinema. É anticinema. Trabalho como roteirista em televisão, ali você tem de ser eficaz, é sabotador. O que chamo teatralidade menor são coisas que não têm nenhuma importância, chekhovianamente falando, sem trama e sem final. Isso é frase de Chekhov, sem trama e sem final, ele diz numa de suas cartas. No teatro, posso trabalhar com cenas mínimas, sem clímax, sem desenlace.

Encontrou essa teatralidade menor na montagem brasileira?

Descobri coisas na montagem de Aderbal Freire-Filho, que é muito espetacular. Isso é supreendente. A peruana, da qual gostei muito, foi feita numa sala vermelha, apenas 70 pessoas na platéia, três portas, um piano muito suave. Aqui há guitarras, jazz, um vibrato distinto. Ao mesmo tempo, Aderbal teve a capacidade de colocar em primeiro plano as ações menores. Com toda a intensidade que o espetáculo tem, parece pequeno - as mesmas pausas, a mesma delicadeza. O espetáculo gigantesco do mínimo. Gostei muito.

Você escreve peças, romances, roteiros, artigos. Há um traço comum em sua criação?

Há uma linha muito forte que atravessa tudo - a linha histórica. Tento contar a história política do Chile no século 20. Há outra íntima, que é O Continente Negro . E há a linha louca. A Secreta Obscenidade de Cada Dia , impossível encontro de Freud e Marx num banco de praça, é uma dessas peças louquíssimas e a encenou Antônio Abujamra há 15 anos. Há várias obras minhas totalmente demenciais. Uma peça de clowns, um sofá que voa, um falso road movie policial cuja trama é totalmente estúpida. Tenho paixão pelo teatro estúpido. Gosto de fazer comédias excessivas. É muito divertido.

Sobretudo para quem faz, não? Às vezes mais do que para quem vê.

Claro, claro. A gente vai apurando a linguagem assim. São exercícios delirantes. Eu tento me divertir escrevendo. Mas, é claro, a ditadura me marcou a vida, sigo escrevendo sobre ela em ensaios, contos.

Ainda é um tema? No Brasil parece já esgotado.

Para mim, não. Sou psiquiatra. E, como tal, me tocaram muitas histórias. Atendi gente cuja vida foi profundamente tocada pela ditadura. Atendi tanto ex-membros do partido comunista como da polícia política. Isso mudou minha vida.

Você ainda atua como médico?

Sim, claro. Atendi pacientes que mataram para o serviço secreto. Não há bons ou maus, todos mataram. O mal é um tema que provavelmente vou desenvolver, de como posso me transformar num assassino. Tenho lido muito Dostoievski. Talvez eu trabalhe sobre Fausto, do Thomas Mann.

Como você está vendo o surgimento de novos políticos na América Latina, como Chávez?

É uma curiosidade. Todo o personagem sem uma ‘aurora' (aponta a testa) me dá medo. Prefiro o governo socialista mais pensado do Chile. Nunca fui dogmático. Pouco antes do golpe, estava rompido com a esquerda e a direita. Não tolero os dogmas, nem mesmo dos ecologistas. A gente dogmática me põe de cabelos arrepiados. Meu teatro tende a ser um convite a pensar, incluindo aí meus escritos sobre psicanálise, sobre literatura. Estou sempre duvidando. Estou esperando que morra Fidel para que possa trabalhar com essa complexa figura.

Por que esperando que morra?

Porque a revolução é tema complexo. O século 20 foi tão revolucionário que é desesperante. Não sobrou nada de todas as revoluções. Da Rússia, só sobrou Chekhov.

Ele é anterior à revolução.

O mundo russo para mim é uma influência muito importante. O que sucedeu com esse mundo? Outra influência importante é a norte-americana, esse império romano. O que é esse império estranho? O século 20 é tão estranho.

Você foi muitas vezes a Cuba?

Fui apenas uma vez, por poucos dias. Tenho pudor de fazer turismo num país que está vivendo uma situação complicada. Queria ir como convidado, conhecer a situação.

Conhece o teatro brasileiro?

Não, muito pouco. A literatura conheço um pouco mais. Machado de Assis é o meu favorito e fiquei muito atraído por Campos de Carvalho. O Brasil é um mundo à parte. As ditaduras trataram de separar os países da América. Há apenas cinco anos comecei a conhecer o teatro argentino, que tem coisas fantásticas, a nova dramaturgia colombiana, a mexicana. Do Brasil conheço pouco, não tenho uma opinião do panaroma. Conheço apenas a literatura dramática consolidada, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos. Nada da nova dramaturgia.

Na oficina, você disse que bonecos eram bons atores porque seus corpos estão mortos e que os atores tinham de morrer para ressuscitar?

Exatamente. Em oficinas mais longas, trabalho muito sobre o corpo, um tema contemporâneo interessante. Agora mesmo no Brasil vocês têm uma exposição com cadáveres trabalhados como material plástico. Esse corpo que Orlan declarou obsoleto. É uma mulher que faz diversas operações plásticas, ora para parecer a Mona Lisa, ora para ter um nariz maia. É louca, mas interessante para pensar sobre essa visão em que as pessoas se operam assim (estala dos dedos) só porque querem ter outro corpo. O corpo tem segredos, não está dominado, não se pode mudá-lo como se troca de celular. Quando interfiro no corpo, interfiro na mente. Aí estão as doenças psicosomáticas, doenças auto-imunes, pessoas destruindo a si mesmas. Um mistério do conhecimento. Mensagem corporal que não pôde ser transformada em linguagem. Um tema que me fascina e que venho estudando muito.

Fonte: O estado de São Paulo