terça-feira, 3 de janeiro de 2012

VIDA DO GRANDE D. QUIXOTE DE LA MANCHA E DO GORDO SANCHO PANÇA





Por António José da Silva, o Judeu*

Ópera que se representou no Teatro do Bairro Alto de Lisboa, no mês de outubro de 1733.


CENAS DA I PARTE
I — Sala de panos de rás, bufetes e cadeiras.
II — A casa de Sancho Pança, mal composta.
III — Bastidores de bosque.
IV — Bastidores de selva.
V — Bastidores de selva.
VI — Bosque, e no meio um monte.
VII — Sala de colunatas, e depois jardim fúnebre.
VIII — Selva.
IX — Selva e o monte Parnaso.
CENAS DA II PARTE
I — Metade selva e outra metade mar, e um moinho no fim.
II — Montes e selvas.
III — Sala de colunatas, mesas e cadeiras.
IV — Sala de azulejos.
V — Outra sala, e mesa mal composta.
VI — Casas.
VII — Jardim alegre.
VIII — Bosque.
APARATO DO TEATRO E SUA FÁBRICA
Um carro com várias figuras dentro.
Uma capoeira sobre um carro, em que irá um leão que sai fora a seu tempo.
Um carro, em que vem Dulcinéia e várias figuras.
Dois cavalos, um de D. Quixote e outro de Sansão Carrasco.
Dois burros, um para Sancho Pança e outro para uma saloia.
O monte Parnaso com as musas, Apolo e o cavalo Pégaso.
Um barco.
Um cavalo que vem pelo ar, e se lhe põe fogo.
Uma nuvem.
Um porco.
INTERLOCUTORES
D. Quixote; Sancho Pança; a Sobrinha de D. Quixote; a ama do mesmo; Teresa Pança, mulher de Sancho Pança; uma filha do mesmo; um tabelião vestido como almocreve; uma saloia em um burro; Sansão Carrasco; seu criado; um diabo, que vem no carro; outro diabo, com muitas cascavéis; um homem, que vem com o leão; Belerma, Montesinos; um, que está na cova; Calíope, que vem na nuvem; Apolo e as musas; dois homens, que são do moinho; dois homens do barco; um fidalgo; uma fidalga; um meirinho; um escrivão; dois homens que tocam rebecas; um homem que toca rebecão; um médico; um cirurgião; um taverneiro; uma mulher moça, com manto; uma mulher velha, em corpo, sem manto; um escudeiro; a condessa das barbas; dois rebuçados; dois homens para a audiência.
PARTE I
Depois de se tocar a sinfonia, canta o
CORO
Todas as vozes juntas
se ouçam ressonar,
e ao nosso festejar
eco responda,
e a tão sonoro acento
pasme a terra e o vento;
que é bem que a terra e o ar
já corresponda.
CENA I
Descobre-se uma sala composta com bufetes e cadeiras, e estará assentado D. Quixote e junto a ele, em pé, a Ama e a Sobrinha, e um Barbeiro fazendo-lhe a barba.
D. Quixote. Senhor mestre barbeiro, veja vossa mercê como me pega nestas barbas, porque são as mais honradas que tem toda a Espanha; e pode gabar-se que nem quantos gigantes tem o mundo se atreveram a olhar para elas, nem com o rabo do olho, porque sempre lhe tive a barba tesa.
Barbeiro. Ela assim o mostra, pois de tão tesa que é, dobra o fio à navalha.
D. Quixote. Ora, sô mestre, você bem sabe que é obrigação dos de seu ofício, enquanto fazem a barba, dizerem as novidades que há pela cidade. Que se fala dos Príncipes da Itália, e do governo político do Orbe? Que, como estive doente e tantos tempos de cama por causa das minhas cavalarias andantes, não tenho sabido nada.
Barbeiro. Senhor D. Quixote, novidades não faltam. Dizem que o turco vem com uma poderosa armada assolando os mares; e os príncipes todos procuram fazer-lhe guerra ofensiva e defensiva, para o que já em Biscaia se prepara uma grossa armada.
D. Quixote. Para que se cansam com tantas máquinas? Eu lhes dera um bom arbítrio , com que em menos de uma hora vençam quantas armadas e armadilhas o turco tiver.
Barbeiro. Diga vossa mercê qual é.
D. Quixote. Não quero; porque não faltarão mexeriqueiros que lho vão dizer e ganhem as alvíssaras do meu trabalho.
Barbeiro. Diga vossa mercê, que lhe prometo, à fé de barbeiro, que aqui fique sepultado sete varas debaixo do chão, como pedra de raio.
D. Quixote. Debaixo dessa fé, que é muito boa, o direi. Mandem esses príncipes buscar alguns cavaleiros andantes, que não faltam na nossa Espanha, que só um deles bastará para destruir com sua espada e sua lança mil armadas.
Ama. Triste de mim, senhora! Seu tio está outra vez doido: ainda crê que há no mundo cavaleiros andantes!
Sobrinha. A mim me melem , se por aqui não anda Sancho Pança, que é o que lhe mete estas loucuras na cabeça. (À parte).
Ama. Vamos ter com Sansão Carrasco, a ver se lhe pode tirar da cabeça estas asneiras, que é homem de manha. (À parte).
Sobrinha. Vamos. (Vai-se).
Barbeiro. Como é possível, Senhor D. Quixote de la Mancha, que um cavaleiro andante possa destruir um navio, quanto mais uma armada?
D. Quixote. Sô mestre, trate do seu estojo, e das suas navalhas e não se meta a querer investigar os recônditos arcanos dos cavaleiros andantes. Se você lera as antigas histórias de Palmerim de Oliva, Roldão, Amadis de Gaula e outros muitos, de que o clarim da fama por cem bocas canta as suas nunca vistas façanhas, soubera então o que vale um cavaleiro andante.
Bem sei de um, que só com um suspiro é capaz de afundar uma armada e cem galeões.
Barbeiro. Quem será esse tal? Tomara-o conhecer.
D. Quixote. Sou eu; eu, D. Quixote de la Mancha, por outro nome o Cavaleiro da Triste Figura. Eu, torno a dizer, eu só com a minha espada e a minha lança e o meu broquel , me atrevo a engolir o Grão Turco, como quem engole uma cereja de saco.
Barbeiro. Quando eu cuidava que vossa mercê estava de todo são desta loucura, ainda o vejo tão enfermo dela! Ora, senhor, deixe esta teima. Quem lhe meteu em cabeça que havia no mundo cavaleiros andantes? E, quando isso assim fora, vossa mercê porventura tinha barbas para o ser?
D. Quixote. Ó grandíssimo magano , por vida de minha senhora Dulcinéia del Toboso, que vos farei em pó e em cinza. Assim perdeis o respeito a um cavaleiro andante?
Atira D. Quixote com o Barbeiro ao chão, e sairá Sansão Carrasco.
Carrasco. Que é isto, senhor D. Quixote? Que obrigou a sua grande modéstia a sair em tanta desesperação?
D. Quixote. Senhor Sansão Carrasco, quem havia de ser senão este barbeirinho, que nega haver cavaleiros andantes no mundo, e que seja eu um deles?
Carrasco. Ah, sô mestre, ponha-me logo os quartos na rua, antes que vá pela janela.
Barbeiro. Não sei donde há de parar D. Quixote com tanta loucura! (Vai-se).
Carrasco. Este miserável está louco confirmado. Querer persuadi-lo é excitá-lo mais. Eu quero ir com o que ele disser, que ele tomará o desengano à sua custa. (À parte).
D. Quixote. Meu amigo, eu estou resoluto a sair segunda vez ao feliz progresso de minhas andantes cavalarias. Ainda que da passada vim muito moído, contudo, desmaiar nos trabalhos não é para corações briosos. Queira Deus que estes malandrines ou encantadores me não persigam com seus encantos, que, invejosos do meu valor, querem escurecer com mágicas aparentes as minhas claras e rocinantes cavalarias.
Carrasco. Deixa-me beijar-te os pés, ó flor dos cavaleiros andantes! Ó único Alcides de nossas eras! Sai, sai, não só segunda vez, mas quinhentas e quarenta e duas, a dar alma ao esquecido cadáver da cavalaria andante, para glória do mundo, e timbre de tua pátria Mancha.
D. Quixote. Dizei-me por vida vossa: que dizem de mim por essa terra?
Carrasco. Que hão de dizer? Que vossa mercê é um louco, mas valente, e que às vezes passa a ser temerário, empreendendo impossíveis. Finalmente, todos dizem que a senhora Dulcinéia del Toboso, minha senhora, é coisa fingida e fantástica e que tal mulher não há no mundo.
D. Quixote. Dizem bem, que o mundo não é capaz de sustentar aquele globo esférico da formosura; e assim o ar é a pátria daquela estrela de Vênus.
Haverá dentro muita bulha, e gritos de Sancho, da Ama e da Sobrinha, e saem
Ama e Sobrinha. Não hás de entrar, Sancho de Barrabás.
Sancho. Eu porventura dei-lhes a vocês palavra de casamento, para me porem impedimento?
Sobrinha. Tu és o que lhe metes na cabeça essas cavalarias andantes.
Sancho. Mau agouro venha pelo Diabo! Essa é bonita! Com que eu sou acaso loucura, para me meter na cabeça de meu amo? Coitado de mim, que eu sou o que pago, pois à conta de suas cavalarias andantes levo muitos coices.
D. Quixote. Que é isso, Sancho Pança? Sempre haveis de vir grunhindo?
Sancho. Que há de ser? A senhora Ama, e a senhora Sobrinha, que Deus guarde, não me queriam deixar entrar a falar com vossa mercê, senhor meu amo, dizendo que eu era a causa de vossa mercê querer ir segunda vez pelo mundo a buscar a ventura. Veja vossa mercê que maior testemunho, quando eu sou o que digo a vossa mercê que, se havemos de ir amanhã, que vamos hoje!
D.Quixote. Não faças caso de mulheres, que bem parece que ignoram o gênio dos cavaleiros andantes.
Sancho. Quanto a isso, têm elas mais que razão.
Carrasco. Amigo Sancho Pança, advirto-lhe, o que era escusado, que faça muito por ser homem de bem; acompanhe a seu amo, como bom escudeiro, que, se assim o fizer, levará o céu brincando.
Sancho. Ah, senhor Sansão Carrasco! Brincando o não levo eu: sabe Deus o que me custa e me tem custado aturar as valentias de meu amo, que sempre a ele lhe dão na cabeça e a mim no fio do lombo; mas diz lá o rifão: Muito alenta uma esperança. Pois que tenho de ser governador de uma ilha, que diz meu amo que me há de dar, não quero patuscadas : recolho-me a ela como a sagrado.
D. Quixote. Sancho, podes viver descansado, que assim apareça essa ilha, como logo tu hás de ser governador dela.
Sancho. Ainda o ela aparecer está em contingências? Cuidei que já vossa mercê a tinha certa.
D. Quixote. Deixa isso por minha conta, que, ou ela queira ou não queira, ela aparecerá, e tu verás como pago os teus serviços.
Sancho. Os meus serviços com quaisquer trinta réis se pagam; até aí posso eu; se vossa mercê me não dá para mais, então irei buscar minha vida. E esses meus serviços só na boca de vossa mercê não é bem que fiquem. Dê-me alguma clareza ou obrigação, por onde o possa obrigar, quando me falte.
D. Quixote. Toma esse papel, que já nele tinha escrito o mesmo que te digo de boca.
Sancho. Ah, senhor, que é mui certo andarem juntos papéis com serviços; e oxalá que, depois de eu os ter feito, não mos quebre alguma preta, que, por serem vidrados, são quebradiços; ou algum daqueles encantadores que perseguem a vossa mercê; porque também as desgraças dos amos se pegam como sarampo ao corpo dos escudeiros; pois vejo que, tendo os meus serviços asas, nem por isso voam, ficando sempre na secretaria dos feitos com uma tampa em cima.
D.Quixote. Sancho Pança, mãos à obra, cora¬ção, espírito valeroso, que juro, à fé de cavaleiro andante, que desta segunda jornada há de ver o mundo quem é D.Quixote de la Mancha; que, se até aqui foi Cavaleiro da Triste Figura, daqui em diante será o alegrão do Universo. Anda, vai-te a preparar, que amanhã, ao romper da aurora, havemos de partir por esse mundo.
Sancho. Eu dera a vossa mercê um conselho.
D. Quixote. Qual é? Dize, que às vezes um louco acerta mais que um entendido.
Sancho. Eu dera a vossa mercê de conselho que não fôssemos ao romper da aurora; porque, se a rompemos, ao outro dia não poderemos madrugar; porque a aurora isso tem, que, em se rompendo, é pior que holanda podre, que se não aproveita uma tira para uma atadura de fontes.
D. Quixote. Deixa disparates e faze o que te digo.
Sancho. Pois adeus, que me vou a armar cavaleiro (quero dizer, burriqueiro, porque eu monto em burro, e não em cavalo) e a despedir-me de minha Teresa Pança, y Io dicho, dicho. (Vai-se).
Carrasco. Pois eu te prometo, amo e mochila , que eu brevemente armarei uma, que ambos torneis desenganados de vossas cavalarias andantes. (À parte).
Sobrinha. Tio da minha alma, veja o desamparo em que me deixa: lembre-se da minha mocidade e que se vai o esteio desta casa.
Ama. Pois fui ama seca de vossa mercê muitos anos, lembre-se deste capelo sem borla.
D. Quixote. Não têm remédio: hei de ir, que não é justo que fique sem minha memorável história. E juntamente vou a fazer muitas obras pias, pois quantas donzelas estarão em necessidade de que um cavaleiro andante lhes defenda o crédito e a honra? Quantos pupilos estarão sem justiça? Quantos cavalheiros honrados estarão encantados por falta de andantes cavaleiros? Enfim, não tenho mais que dizer: vou a castigar insolentes a endireitar tortos.
Cantam D. Quixote, Carrasco, Ama e Sobrinha a seguinte
ÁRIA
Sobrinha. Ai, meu tio, não se ausente.
D. Quixote. Calai-vos, impertinente.
Ama. Meu Senhor, isso é loucura.
Carrasco. Ide, ide, D. Quixote.
Sobrinha. Mas que hei de fazer sem tio?
Ama. Mas que hei de fazer sem amo?
Carrasco. Deixai ir esse mamote.
D. Quixote. Não haja mais choro, ah tal!
Ama. Um amo, que tanto amo.
Sobrinha. Ai sobrinha sem ventura!
D.Quixote. Ora adeus, ó pátria amada.
Carrasco. D.Quixote, avante, avante!
Sobrinha. Minha dor matar-me trata.
Ama .Minha pena me sufoca.
D. Quixote. Isto é espada, não é roca .
Carrasco. Tu te vás, D. Quixote, por teu mal.
CENA II
Aparece a casa de Sancho ridiculamente composta, e nela estarão Teresa Pança, e sua filha, e sai Sancho.
Sancho. Jesus! Mulher dos meus olhos, estou tão contente, que venho saltando, e quero saltar.
Teresa. Sancho Pança, achaste alguma mina? Que é isto, marido?
Sancho. Mulher, mina de caroço; desta vez não há de haver parente pobre. Estou tão contente! Ai, mulher, dai-me um púcaro de água, que me desmaio de gosto.
Filha. Paizinho, ai! Diga-nos já, que estamos rebentando pelas ilhargas para o saber.
Sancho. Que hei de ter, filha das minhas entranhas? Que hei de ter, mulher desta alma? Não vedes que segunda vez determino ir por esse mundo com meu amo o Senhor D. Quixote de la Mancha? E vejam vocês se com esta fortuna poderei estar alegre.
Teresa. Marido, segunda vez vos quereis ausentar de meus sujos braços? Ora deixai-vos ficar.
Filha. Valha-me Deus! Senhor, ainda vossa mercê se mete com esse D. Quixote? Pois há de tirar bom pão. Assim como da outra vez.
Sancho. Calai-vos lá, porquinha: eu, se vou, é para buscar cabedal para casar-te; e sem dúvida que desta vez faço um fortunão de meus pecados, pois diz meu amo o senhor D. Quixote que logo em duas palhetadas me há de dar uma ilha para governar; e vejam vocês, sendo eu governador de uma ilha, se terei dinheiro como milho, e teremos pão como terra!
Teresa. Ai, marido, se isso é assim, já digo que vades logo rebolindo, e já lá havíeis estar.
Filha. Diga-me, senhor pai, e que tal é a ilha, de que vossa mercê há de ser governador?
Sancho. É a mais excelente do mundo. É mui grande: tem sete palmos de comprido e dois de largo; tem muita árvore de espinho. O que me gabam mais é um passeio que tem, de ortigas, que dizem é uma maravilha. Sobretudo tem ao pé dos muros um canteiro de boninas, que cheiram, que tresandam. Tem muito lega-cachorro e é tão sadia, que todos os anos tem um ramo de peste. Não, quanto a eu ir bem acomodado, nisso não se fala. Tomara-me eu já nessas limpezas, e então, se Deus quiser, casarei a minha Sanchica com um fedalgo . Ouves tu? Bem podes aparelhar esse rabo, que se há de assentar em coche, ou eu não hei de ser quem sou.
Filha. Visto isso, ou hei de ter dom!
Sancho. Dom e redom, como um alho. Essa seria bonita! Deixaria de ter dom a filha de um governador! Parece-me que já estou vendo e ouvindo as vizinhas do nosso lugar, quando tu saires à rua, dizerem todas pela boca pequena: Lá vai, lá vai a filha do governador Sancho Pança,
Teresa. E eu, marido, como hei de andar?
Sancho. Hás de andar às costas de um mariola, por não pores o teu pé no chão. Mas isso não é do caso; vamos ao alforge que hei de levar para tão longa jornada. Primeiramente, embrulha-me uma canada de vinho em um guardanapo, dois queijos em uma borracha, uma pouca de alcomonia de sabão mole, um par de alfarrobas, etc. Na outra perna do alforge, quero que vá bem acondicionada a minha roupa, a saber, camisa e meia, meia ciloura , uma meia sem companheira, um lenço pardo, outro de caneca riscado, dois pescoções de bofetão da Índia. Isto entendo que sobeja para tão larga jornada, fora o que levo no corpo.
Teresa. Olhe você: se quiser levar duas gaiolas de grilos, que estão mui bem criados, não será mau, para os comer nas estalagens.
Filha. Também poderá vossa mercê levar duas caixas de chícharos de conserva para almoçar, que são bons para a enxaqueca.
Sancho. Tudo é bom: quanto mais, melhor; principalmente os chícharos, pois às vezes tenho umas enxaquecas na barriga, e umas cãibras no nariz, que me matam. Bom fora também levar umas panelinhas de doce de cócaras; porém, mulher, como eu vou para tão longe e com perigo de vida, pois vamos a brigar com todo o mundo, bom será que faça meu testamento; que, ao menos, quando não tenha o fim que pretendo, não se perde o estar feito.
Teresa. Parece-me muito bem; agora vejo que em tudo sois prudente.
Sancho. Vós ainda não sabeis que marido tendes!
Teresa. Disso me queixo eu, e ainda mal, que tanto o experimento, pois a miséria com que me tratais me faz ver as estrelas ao meio-dia; e, sendo casada convosco há quarenta e dois anos, seis meses, três semanas, doze horas, oito minutos e vinte instantes, nunca em vosso poder me vi com a barriga cheia.
Sancho. Quando eu for governador, tomareis a vossa barrigada. Ide chamar o tabelião.
Teresa. Aqui não há tabelião; somente quem serve de tabelião é o almocreve Antônio Fagundes.
Sancho. Venha quem for, que o testamento é pequeno, e qualquer tabelião basta.
Teresa. Mas ele aqui vem. Deus o trouxe a bom tempo. (Sai o tabelião, vestido de arrieiro).
Tabelião. Guarde Deus a vossa mercê, senhor Sancho Pança. Como está vossa mercê?
Sancho. Para servir a vossa mercê.
Tabelião. Para servir a nosso senhor, que lhe dará bom pago. Que quer vossa mercê?
Sancho. Sente-se vossa mercê muito a seu gosto na ponta desse espeto.
Tabelião. Eu aqui me acomodo; estou bem: aos pés de vossa mercê é o meu lugar.
Sancho. Saberá vossa mercê que eu quero fazer o meu testamento por escrito, que me dizem que o nuncuchupativo não é tão bem. Sabe vossa mercê fazer testamentos?
Tabelião. Suposto que eu nunca fizesse testamento, contudo já fiz um escrito de casamento a uma negra; e quem faz uma coisa também faz outra.
Sancho. Isso basta e sobeja. Ora sente-se; aí tem papel selado, que já me serviu em várias necessidades. É bom papel: tudo o que se escreve de uma banda, se pode ler da outra com muita facilidade. Ora ponha uma perna sobre a outra; escreva à sua vontade.
Tabelião. De qualquer sorte estou bem, para servir a vossa mercê.
Sancho. Para servir a Deus. Olhe, meu amigo, não faça ceremônias : desaperte-se, tire fora os calções, ponha-se em fralda de camisa, esteja a seu gosto; e enquanto escreve, se quiser tanger bandurra, aí a tenho muito boa, que me veio de Berberia.
Tabelião. Vamos ao testamento, que tenho que ir dar de beber às minhas bestas.
Sancho. Ora vá lá fazendo a cabeça do testamento, que isso pertence aos tabeliães.
Tabelião. Está feita.
Sancho. Vejamos. Homem, esta cabeça não presta. Você não lhe põe cabeleira? Ui, senhor. Ponha-lha em todo o caso, que este testamento há de aparecer em público, e não é bem que vá uma cabeça sem compostura.
Tabelião. Aí lhe ponho a cabeleira. Que mais?
Sancho. Espere, espere. Já lhe pôs a cabeleira?
Tabelião. Já, sim, senhor.
Sancho. Valha-me Deus! Não sei se lhe puséramos antes uma carapuça preta, que é cor de quem morre! Veja se lhe pode tirar a cabeleira, por vida sua.
Tabelião. Eu a borro, e lhe ponho a carapuça.
Sancho. Homem, você não pode tirar uma cabeleira a uma pessoa de cabeça, sem a borrar? Ora vá como for, eu cá ao depois lhe farei isso. Digo primeiramente…
Tabelião. Mente.
Sancho. Mente ele, grandíssimo magano. A mim me desmente na minha cara?!
Tabelião. Este mente é cá do testamento, que não ofende a ninguém.
Sancho. Isso é outra cousa. Declaro, por descargo de minha consciência, que me chamo Sancho Pança, natural do bom gênio; declaro mais que fui casado dezenove vezes, todas contra minha vontade. Item , que desta última mulher tenho…
Teresa. Criada de vossa mercê.
Sancho. Calai-vos lá, tola; não embaraceis o pavio da história. Tenho três filhos, cujos nomes me não lembram por ora. Item, que sou senhor e possuidor de muitos bens móvitos e de raiz, e outros sem raiz: os móvitos vêm a ser duas bassouras do Algarve, dois esfolinhadores da chaminé, e uma rótula já furada. Item trinta e três cadeiras, que já deram com o couro à sola. Item mais um bufete de pau, que veio de bordo, três painéis já em muito bom uso, a saber; um do mundo às avessas, outro de um navio que pintou o meu pequeno; e outro que já se não sabe que pintura tem; porém supondo que seria boa. Item um espelho de despir sem aço, um mafamede da Índia, com seu tapete de Arraiolos, coberto por cima. Item uma excelente manta de retalhos, que me veio do Japão, e outra, que me há de vir do Jaqueijo . Item uma formosa teia de aranhas, duas colheres de tartaruga bastarda, um bispote e o mais trem da cozinha. Ora vamos agora aos bens de raiz: Declaro que tenho umas casas na minha véstia. Item um parreiral de uvas de cão no meu telhado. Item dois vasos, um de ensaião, e outro que teve arruda, que ainda se conhece pelo cheiro. Item mais uma árvore de geração. Passemos agora ao meu gado. Em primeiro lugar, tenho um burro, que lhe chamam o ruço por alcunha; tenho mais duas cadelas paridas. Declaro que me não devem nada, e que eu devo os cabelos da cabeça. Deixo a minha mulher tudo quanto puder furtar no inventário. Deixo a minha filha Sanchica o meu bom coração e aos meus dois filhos lhes não deixo nada, porque, se o quiserem que o furtem, como eu fiz. Instituo por meu universal herdeiro forçado a um mouro da galé, a quem peço que faça pela minha alma o mesmo que eu fizera pela sua. Tal parte, em lugar do cu de Judas, tantos do mês passado, etc.
Tabelião. Ora assine-se vossa mercê aqui atrás.
Sancho. Atrás só me assinarei, se for pena a sua língua; dou por assinado, que eu em tal não assino.
Tabelião. É preciso, que sem isso não vale nada o testamento.
Sancho. E que tem ninguém que ele valha, ou não valha? Olhem que está galante! De quem é o testamento? Não é meu? Pois posso fazer dele o que quiser. Mulher, guardai bem este papel; vede que não o percais, que pode servir para mechas. Ora adeus, mulher; dai-me um abraço.
Teresa. Ai marido, lembrai-vos da vossa casa; não andeis de noite; não me deis mais penas.
Sancho. Ó filha, não tenho que encomendar-te a tua honra, que é o melhor camafeu que tens. Se alguém, quando estiveres na janela, te fizer um bicho, corresponde-lhe com outro, que a cortesia nunca se perde. Ouves? Nunca dês o sim a tudo o que te pedirem; porque desta sorte serás bem reputada.
Teresa. Pois, já que te ausentas, ó meu amado Sancho, despeçamo-nos cantando.
Sancho. Ora vá, que eu começo.
Cantam Sancho e a mulher a seguinte
ÁRIA A DUO.
Sancho. Adeus, Teresa amada.
Teresa. Não posso dar um passo.
Sancho. Adeus, que não é nada.
Teresa. Oh triste desgraçada!
Sancho. Dá cá, dá cá um abraço.
Teresa. Ai, que eu quero desmaiar.
Mas, ai de mim! Que vejo?
Sancho. Amado Caranguejo.
Teresa. Teu vil rigor não chora?
Sancho. Chora tu, bela aurora,
que eu nunca em despedidas quis chorar.
CENA III
Mutação de bosque. Aparece D. Quixote a cavalo com lança e Sancho em um burro.
D.Quixote. Ainda não creio, amigo Sancho Pança, que me vejo montado em rocinante, para prosseguir minhas aventuras.
Sancho. Digo-lhe a vossa mercê, senhor meu amo, que tenho o rabo nesta albarda e me parece que o tenho na palha da estrebaria. Oxalá que tenhamos melhor ventura, que da vez passada!
D. Quixote. Para que tenhamos bom sucesso nesta empresa, e por cumprir com as leis da cavalaria andante e com os ditames do meu amor, quero, Sancho, que vás ao castelo em que vive aquela sem igual Dulcinéia del Toboso, minha muito senhora, e que lhe digas da minha parte que já me acho em campo raso, para batalhar com quantos gigantes tem o mundo, por seu respeito; e que tudo servirá de despojo, para colocar no templo de sua formosura.
Sancho. Senhor, que Dulcinéia é esta? Aonde mora? Que tal mulher entendo não há no mundo. Logo, como quer vossa mercê que eu a busque, se ela não é coisa viva?
D. Quixote. Vai, não repliques; se não, com esta lança te abrirei essa barriga. Vai, que eu te espero aqui debaixo deste tronco.
Sancho. Ora o caso está galante, por vida minha! Donde hei de achar a tal Dulcinéia dos demônios? A força quer D. Quixote que haja tal mulher no mundo! Mas de quem me queixo, se eu tenho a culpa de me meter com um louco de pedras? Porém lá vem uma saloia. Bom remédio; vou-lhe dizer, que esta é Dulcinéia, pois a ele tudo se lhe mete na cabeça. Ah, senhor meu amo! Venha cá depressa: eis aqui a senhora Dulcinéia, que vem ver a vossa mercê.
D. Quixote. Sancho, como pode ser esta Dulcinéia, quando ela é uma senhora tão galharda? Como pode vir em um burro, quando a carroça de Apolo ainda é pequena carruagem para sua soberania? Não vês uma saloia feia e trapalhona?
Sancho. Senhor, vossa mercê não se lembra que os encantadores mudam as formas das pessoas, só para que vossa mercê não logre a fortuna de ver a senhora Dulcinéia?
D. Quixote. Dizes bem, Sancho amigo. Oh, mal hajais, malditos encantadores, pois mudais a forma de Dulcinéia, filis e galharda, em uma saloia choquenta!
Saloia. Senhores, vossas mercês, que me querem? Larguem-me o freio da burra; deixem-me ir vender as minhas cebolas.
D. Quixote. Espera, ó luz de meus olhos; recebe, antes que te ausentes, este fino amante no regaço de teus agrados, pois só a ti te dedico os suores frios de meus trabalhos. Aqui me tens, ó bela ninfa, pois a teus pés sou idólatra da tua beleza.
Sancho. Ó princesa da formosura! Ó duquesa do melindre! Ó arquiduquesa dos dengues! Não desprezes um andante cavaleiro, que a carqueja do seu amor, arde na chaminé dos teus olhos a repetidos assopros da sua mágoa. Ponha vossa mercê os olhos naquele peito, e o verá cheio de cabelos, mais claros cá água, e outros mais ruivos cá canela .
Saloia. Estes homens estão doidos. Vão-se cos diabos. Vocês vêm zombar de mim? Arre lá! Xó! (Vai-se).
D. Quixote. Ó animada exalação, não te desfaças em cintilantes repúdios. Tanto estes encantadores me perseguem, que até fazem com que caias; porém, ó vil canalha, lá virá tempo em que eu me vingue de vós.
Sancho. Digo que vossa mercê tem muito bom gosto em amar a senhora Dulcinéia. Não vi coisa mais peregrina! Deixou-me atoclo , vendo aquele brio!
D. Quixote. Oh, afortunado Sancho, que foste tão feliz, que chegaste a ver sem encantos e transformações aquela deidade humana! Dize-me: é formosa?
Sancho. De formosa passa ela. Se vossa mercê vira aqueles olhos, que pareciam olhos de couve murciana! O nariz, isso era cair um homem de cu sobre ele; tinha umas mãos de rabo; o corpo parecia corpo de delito, pelo que matava a todos; os cabelos não vi eu, só o que eu vi foram dois piolhos de rabo, que lhe saíam pelos buracos da coifa. O que mais me regalava era ver umas rosquinhas doces, que fazia junto ao pescoço. Enfim, senhor, os pés eram dois pés de cantiga. Eu confesso que se não fora casado, que a tal senhora Dulcinéia não me escapava.
D. Quixote. Ó Sancho, espera! Não vês que lá vem um castelo movediço, com muita gente dentro? Grande dia se nos espera! Deus seja conosco.
Sairá um carro tirado de uma mula, sobre a qual virá um Diabo; dentro do carro virá a Morte, Cupido, um Anjo, um Imperador e outra figura muito bem vestida.
Sancho. Ai, miserável Sancho, aonde estás metido! Melhor me fora estar na minha aldeia, que não vir agora ver estes gigantes Engolias .
D. Quixote. De que temes, cobarde? Olha, não vês estes gigantes vivos? Pois logo os verás mortos. Ó vós, quem quer que sejais, dizei-me quem sois e aonde ides.
Diabo. Senhor, nós somos uns pobres representantes de comédia, que imos já vestidos para fazer um auto sacramental aqui a uma quinta; eu faço papel de Diabo, este de Anjo, este de Morte, este de Imperador; e os mais fazem vários papéis.
D. Quixote. Ora sempre as cousas se devem primeiro especular, antes que se façam. Se não vos declarais, hoje aqui todos ficaríeis mortos, cuidando que éreis gigantes ou encantadores.
Sancho. Boas novas te dê Deus, que eu já estava sem pinga de sangue no corpo.
Sai um Diabo com cascavéis, e espanta-se o cavalo de D. Quixote, e cai no chão, e o Diabo monta no burro de Sancho.
Sancho. Jesus, nome de Jesus! Lá vai meu amo ao chão! Ah, senhor, não caia; espere, que eu já lhe vou acudir.
D. Quixote. Ai de mim! Acode-me, Sancho, que quebrei o espinhaço.
Sancho. Ai senhor, que o Diabo lá me leva o meu ruço! Ó ruço dos meus olhos, ó prenda de minhas nádegas, ó centro de minhas bebas; que será de mim sem os teus sonoros zurros? Senhor, para aqui são as lágrimas. Ah, senhor, que o Diabo levou o meu burro!
D. Quixote. Que Diabo?
Sancho. O Diabo das bexigas. Jesus sagrado! Ah, sô Diabo, largue o meu burro, por vida de Ferrabrás.
D. Quixote. Por vida de Dulcinéia, que os do carro me hão de pagar. Esperai, turba alegre e folgazona, que eu vos ensinarei o como se tratam os burros dos escudeiros dos cavaleiros andantes. (Sai o burro).
Sancho. Senhor, não pelejemos, que o burro já aí está; escusemos tantas mortes.
D. Quixote. Bem está: a prudência às vezes é melhor que o valor; ide-vos em paz.
Sancho. Ouvis lá? Bom padrinho tivestes no meu burro, que, se não aparece, tudo vai à espada.
CENA IV
Mutação de selva, e a um lado estará um cavaleiro reclinado, e um moço, e sairá D. Quixote e Sancho Pança.
D. Quixote. Sancho, ata este cavalo a esse tronco, que já o sol se escondeu no vestuário de Tétis, depois de fazer primeiro galã dos astros na comédia do dia.
Sancho. Boa metáfora; mas eu tenho a barriga vazia e não estou para ouvir conceitos. Olhe vossa mercê, senhor. Ali estão dois homens reclinados sobre a relva e dois cavalos atados naquele salgueiro, que fazem quatro.
D. Quixote. Algum cavaleiro andante deve ser, que anda buscando aventuras.
Canta o Cavaleiro o seguinte
MINUETE
Sem ter melhora
meu peito ardente
a chama sente
do deus rapaz .
Que Amor parece,
ninguém duvida,
porque a ferida
bem clara está.
Suspende a frecha,
deus fementido;
ouve o gemido
que o pranto faz.
Sancho. Ele canta com bom estilo, e à moda .
D. Quixote. Segundo a letra e o afeto, mostra estar namorado. Valha-te Deus, amor, que até nos peitos de bronze introduzes corações de cera! Senhor cavaleiro, como a sociedade nos homens é significativo do racional, por isso não estranhe vossa mercê o meu atrevimento em interromper as sonoras cláusulas do seu sentimento; porém, como as penas comunicadas são menos sensíveis, diga-me vossa mercê o que sente, que, se o alívio de suas mágoas consistir na ponta desta lança e fio desta espada, tenha por certo que o hei de fazer.
Carrasco. Honrado cavaleiro, bem parece que tendes generoso ânimo, e assim vos agradeço essa oferta; mas sabereis que a mim por ora me não ofendem inimigos, senão uma inimiga, cujo rigor me tem morto e me faz andar renovando a cavalaria andante, só por ver se posso aplacar o seu desdém, oferecendo-lhe a cabeça de um gigante.
D. Quixote. Com que, vossa mercê é cavaleiro andante? Ora ajunte-se comigo, e falemos na matéria, que, como professor dela, estimo muito estas práticas.
Criado. Enquanto nossos amos lá praticam sobre os seus amores e valentias, vamos dando à taramela e fazendo pela vida.
Sancho. Meu amigo, agora fico mais consolado nos meus infortúnios, pois mal de muitos consolo é. Até aqui, cuidava que só eu era desgraçado, em ser escudeiro de cavaleiro andante; mas já vejo que vossa mercê nasceu debaixo da minha estrela.
Criado. Como se chama seu amo?
Sancho. D. Quixote de la Mancha para servir a vossa mercê, que nunca tal homem nascera no mundo, pois por ele tenho padecido o que Deus sabe: basta deixar a minha casa com tudo quanto tinha nela.
Criado. Tendes filhos?
Sancho. Boa está essa! Com que destes anos ainda não havia de ter filhos? Tenho uma rapariga, meu amigo, que dá com a cabeça no teto da casa, e é mui valente e desembaraçada. Quando come, não usa de cerimônias; despeja uma casa com a maior limpeza do mundo; e sobretudo tem o mau cheiro da boca, que é mal de que fogem todos. Quero-lhe como aos meus olhos, que fora da sua vista, os vejo cheios de lágrimas.
Criado. E os meus estão mui cheios de sono. Durmamos?
Sancho. Durmamos.
Carrasco. Como lhe vou contando a vossa mercê, a senhora a quem amo é uma Calcidéia de Vandália, nome suposto, com que a apelido nas minhas obras poéticas. Esta, enfim, me disse que, se a quisesse receber por esposa, fosse pelo mundo e fizesse confessar que ela era a mais bela e formosa dama que havia no orbe. Tenho feito confessá-lo a muitos, e ultimamente ao grande D. Quixote de la Mancha, o qual disse que minha senhora Calcidéia de Vandália era mais formosa que a sua Dulcinéia del Toboso. Com que, vencendo eu a D. Quixote, que venceu a todos os cavaleiros do mundo, venho a vencer a todos, vencendo a quem a eles os venceu.
D. Quixote. Sem dúvida, senhor cavaleiro, entendo que estais enganado, por ser impossível que vençais a um D. Quixote; e basta que eu vos diga que nenhum cavaleiro do mundo o pode vencer; e por vos não desmentir, digo que algum encantador inimigo de sua glória tomaria a sua forma, para que, ficando vencido, não se coroasse a fama de seu valor com eterno diadema; e tanto assim, que não há dois dias, que estes mesmos encantadores transformaram a senhora Dulcinéia del Toboso, sendo a mais gentil deidade que calçou coturno, em uma saloia suja, hedionda e terrível. Com que, senhor, entendei que não vencestes a D. Quixote verdadeiro.
Carrasco. Tão verdadeiro e tão o mesmo, que mais não podia ser.
D. Quixote. Digo que tal não há; pois D. Quixote é este que vedes presente. Vede como o podíeis vencer. (Levanta-se).
Carrasco. Pois verdadeiro ou fingido, sempre o venci; tenho dito.
D. Quixote. Pois, cavaleiro, bom remédio: em campo raso e em singular desafio, veremos qual é mais valente.
Carrasco. E o que ficar vencido ficará ao arbítrio do vencedor.
D. Quixote. Não duvido. Sancho, Sancho, acorda; que já a aurora, rasgando o manto da noite, veste o pólo de rubicundos adornos; Sancho, acorda.
Sancho. Senhor; senhor, eu vos arrenego, canalha. Não deixareis dormir a um pobre escudeiro andante?
D. Quixote. Sancho amigo, acorda, que já o sol te dá de rosto com as suas luzes.
Sancho. E que tenho eu com isso? Senhor, vossa mercê cuida que eu também sou doido como vossa mercê, para não dormir? Apenas tinha pegado no sono com as pontinhas dos dedos, quando logo mo fez largar. Que quer que diga? Valha-o mil diabos!
D. Quixote. Vai selar o Rocinante, que temos que brigar esta manhã com aquele cavaleiro do bosque. Anda, Sancho; vai depressa.
Sancho. Estou dormindo, que é o mesmo que estar ninando. Ora salve Deus a vossa mercê. Ah, senhor, eu devo de ter muita cólera na barriga.
D. Quixote. Por quê, Sancho?
Sancho. Porque me sabe a boca a ferro-velho.
D. Quixote. É porque logo havemos de brigar com este cavaleiro do bosque, que o desafiei. Ele deve de ser pessoa particular, porque traz mascarilha .
Sancho. Ora, senhor, cuide vossa mercê noutra cousa; brigar logo de manhã é asneira.
D. Quixote. Faze o que te digo e não me repliques. (Traz Sancho o cavalo).
D. Quixote. Cavaleiro, quem quer que sois, já estamos em campo raso; vereis se sou eu o mesmo D. Quixote a quem vencestes.
Carrasco. Quem vos venceu transformado, melhor vos vencerá verdadeiro.
Sancho. Senhor D. Quixote, por vida da senhora Dulcinéia lhe peço que me ajude a subir naquele zambujeiro, que quero ver touros de palanque.
D. Quixote. Avançai, bom cavaleiro. (Investem os cavaleiros, e cai Carrasco).
D. Quixote. Sancho, acode, que vencemos.
Sancho. Agora, sim. Corte-lhe vossa mercê logo a cabeça, pelo que potest succedere .
D. Quixote. Tira-lhe a máscara.
Sancho. Ah, senhor, que ele bole! Suba-me outra vez ao zambujeiro.
Carrasco. Ai de mim! Venceste, D. Quixote: negar não posso que sois o mais valente cavaleiro do universo.
D. Quixote. Haveis de confessar que minha Senhora Dulcinéia Del Toboso é mais formosa que vossa Calcidéia de Vandália, tirando para isso a máscara. Mas que vejo! Não sois vós Sansão Carrasco? (Tira-se-lhe a máscara).
Sancho. É boa história! Veja vossa mercê, se não fala, como o leva o Diabo de meio a meio!
Carrasco. Eu sou vosso amigo Sansão Carrasco, que quis vir disfarçado, a ver se vos vencia, para que assim tornásseis para casa, sem essa loucura; mas já vejo que sois verdadeiro cavaleiro andante, e negá-lo não posso.
D Quixote. Ide em paz e dizei a esse barbeiro incrédulo que vos cheguei a vencer; para que fique desenganado que sou cavaleiro andante.
Sancho. Ide em paz e dizei a esse barbeirinho que quem vence a um Carrasco é o mesmo que vencer a morte.
CENA V
Mutação de selva, e sairá um homem com um carro, e dentro um leão em uma capoeira.
Homem. Grande trabalho me tem dado a condução deste leão, pela fragosidade dos caminhos; e queira Deus que seja bem pago do meu trabalho. (Saem D. Quixote e Sancho).
D. Quixote. Sancho Pança, não vês aquele vulto? Pois não é menos que uma rara aventura que nos espera.
Sancho. Senhor, não ande cuidando nisso; por¬que tudo quanto vir lhe há de parecer aventura; pois da imaginação nascem as causas.
D. Quixote. Ó Sancho, tu sabes Filosofia? Quem te ensinou isso?
Sancho. Eu mesmo. Vossa mercê cuida que eu sou algum leigarrão? Sabe vossa mercê que mais? Que dentro daquela gaiola vem um formoso leão.
D. Quixote, Um leão! Ó homem do leão? Da parte de Deus te requeiro que soltes esse leão, que quero brigar com ele, para o que já o espero à boca da capoeira. (Apeia-se D. Quixote).
Sancho. Adeus, pobre Sancho Pança! Bem avia¬dos estamos: quer agora também brigar com leões! (À parte).
Homem. Senhor passageiro, requeiro a vossa mercê que este leão é africano, feroz e terrível, e que vai de presente a um fidalgo, que o manda o Grão Turco.
D. Quixote. Que tenho eu com o Grão Turco, nem com o fidalgo? De duas uma: ou tu hás de soltar o leão, ou te hei de matar, porque me diz o coração que nele vem transformado algum gigante.
Sancho. Ó homem, tem mão; não soltes esse leão, que é mui faraó .
Homem. Pois vossa mercê quer que o solte? Veja lá o que diz; ao depois não se queixe.
D. Quixote. Solta-o, não ouves?
Sancho. Tem mão, homem, não o soltes. Ah senhor leão, não me faça mal; lembre-se que já comemos e bebemos ambos muitas vezes. Vossa mercê não é o leão do Carmo? Desgraçado Sancho Pança! Quanto melhor me fora estar antes enterrado em um carneiro , que na barriga de um leão! Ah sô leão, vossa mercê vem enganado; eu não fui o que o desafiei. Ali está meu amo, que o chama; vá para lá; e, já que eu hei de morrer, quero morrer cantando, como fez D. Cisne das Alagoas, e talvez que este leão seja amigo de árias.
Canta Sancho a seguinte
ÁRIA.
Ai, que estou tremendo!
Ai, que já me agarra!
Oh, como estende a garra!
Ai, ai! Tomara-me esconder.
Vai-te, monstro horrendo!
Tem dó do pobre Sancho,
recolhe o duro gancho,
que já me faz tremer.
Acomete o leão a D. Quixote e este o mata.
D. Quixote. Bruto rei das montanhas, porque foges de um cavaleiro andante? Vem a acometer-me, e verás o meu valor.
Sancho. Ó cão leão, a ele: espere, que eu vou. Vítor D. Quixote!
D. Quixote. Daqui em diante não quero que me chamem o Cavaleiro da Triste Figura, senão o Cavaleiro dos Leões, em memória deste caso.
Homem. Não vi mais valente homem no Mundo! Vou pasmado!
CENA VI
Mutação de bosque, e no meio haverá um monte e um homem; e pelo monte descerá
D. Quixote e Sancho Pança.
Sancho. Mui fragosa e escorregadia é esta terra! Muito tropeça o meu burro!
D. Quixote. Ó vilão, dizei-me: que fazeis aí, e que monte é este?
Vilão. Este monte, senhor, é aonde está aquela célebre cova encantada, que chamam a cova de Montesinos.
D. Quixote. Oh, quem tivera um tesouro, que dera em alvíssaras! Vês aqui, Sancho, quando di¬zem: vêm as fortunas, sem ser esperadas. Há quan¬tos anos que eu andava buscando esta cova, donde está encantado aquele célebre cavaleiro andante chamado Montesinos? Pois a ocasião se nos meteu nas mãos; não tenho mais remédio, que descer por ela a desencantar este bom cavaleiro.
Sancho. Tire vossa mercê daí o sentido; só esta me faltava para sofrer! Que tenho eu com Montesi¬nos, nem ele comigo? Vá vossa mercê cos diabos, se quiser, que eu não quero enterrar-me em vida. Ainda me lembra o leão. (À parte).
D. Quixote. Anda, Sancho, que, se agora não achamos a ilha para seres governador, nunca a acharemos. Vem, que serás bem premiado, pois aqui nesta cova há muito ouro, e isto são minas encantadas.
Sancho. Uma vez que são minas, eu vou; que mais vale uma hora rico, que toda a vida pobre.
D. Quixote. Amigo, ficai guardando estes animais, e vede se tendes aí algumas cordas, com que nos ateis pelas cinturas, para que não caiamos, e demos lá no profundo.
Vilão. Aqui estão, pois eu sou o guarda desta cova, e já estou aparelhado para este ministério.
D. Quixote. Pois ata-nos bem; quando disser larga mais a corda, vai largando.
Sancho. Tanto que tiveres deitado quatro palmos, puxa logo para fora.
D.Quixote. Sancho, faze um ato de contrição, e fecha os olhos.
Sancho. Ora graças a Deus, que vou a enterrar em vida. Bem fiz eu em fazer o meu testamento. Ai, senhor, que aí vem uma legião de gigantes! Misericórdia, meu Deus! Xô, diabo! À que del-rei, que estou com as gralhas na alma!
D. Quixote. De que te assustas? São uns passarinhos, que vêm a aplaudir a nossa entrada.
Sancho. São passarinhos! Oh, quem me dera ter aqui a minha espingarda!
D. Quixote. Amada Dulcinéia, a ti me encomendo neste perigoso transe. Ajudai-me a levar com paciência estes rigores. Sancho, ou morrer, ou viver.
Sancho. Essa razão me encova.
CENA VII
Mutação de colunata, que depois se mudará em jardim de figuras tristes; e sairá Montesinos com barbas grandes, sotaina e gorra; e virão descendo D. Quixote e Sancho.
Sancho. Ah, senhor, é um regalo voar um homem, como se fora pardal!
D. Quixote. Graças a Deus, que chegamos! Vês, Sancho, que admirável palácio? Vês estas colunas dóricas e coríntias? Olha estes jaspes! Que te parece?
Sancho. Parece-me que tudo isto é pintado em tábuas de pinho ; mas ainda assim, eu quisera antes andar voando, que me regala.
Há dentro terremoto, e escurece tudo, ouvindo-se muitos ais, lamentos, raios e trovões.
Sancho. E que diz vossa mercê agora destas colunas e destes jaspes coríntios? Senhor, nós estamos no Inferno a bom livrar. Os cabelos se me arrepiam. Ai, senhor, não sei que suor frio me vai dando! Eu me mijo por mim.
D. Quixote. Agora verás, ó nobre escudeiro Sancho Pança, as prerrogativas de um cavaleiro andante. Dize-me: ouviste contar algum dia a teus avós façanha como esta? Viste algum dia em letra redonda ou grifa dizer que algum cavaleiro, o mais intrépido, fizesse ação tão sobrenaturalmente heróica, como a que com os teus olhos estás vendo? Viste como valoroso campeão me arrojei a esta cova?
Sancho. Isso mesmo faz qualquer defunto.
D. Quixote. Viste como, depois de encovado, penetrei as duras entranhas dessa penha, abrindo ca¬minho com a espada na mão, derrubando montes, ou para melhor dizer gigantes amontoados, até que chegamos a este abismo?
Sancho. Meu amo é um abismo! (À parte). Mas diga-me, senhor, aonde estamos nós?
D. Quixote. Estamos no Inferno.
Sancho. Em Purgatório está quem lida com vossa mercê. É boa graça! Com que, parece-lhe a vossa mercê que isto é Inferno? Ora o certo é que está pouco visto em matérias de Inferno.
D. Quixote. De que te espantas, animal?
Sancho. Porque sou animal, por isso me espanto. Ora venha cá: Quem se não há de espantar de ouvir dizer a vossa mercê que está no Inferno assim à chucha calada, e eu também, sem me doer pé nem mão, graças a Deus?
D. Quixote. Sancho, eu não tenho culpa que sejas um simples escudeiro, sem notícias, nem litera¬tura. Se tu leras a Virgílio, no sexto livro das Eneidas, lá verias que também Enéias foi ao Inferno, e lá viu a seu pai Anquises e a Rainha Dido.
Sancho. Essa Rainha Dedo era macho, ou fêmea?
D. Quixote. Não se sabe de certo; o que se diz é que era mulher varonil.
Sancho. Visto isto, era macha-fêmea! Com que, senhor, uma vez que Enéias foi ao Inferno, vá vossa mercê também; mas não consta que Enéias tivesse escudeiro, como vossa mercê tem.
D. Quixote. Ora, Sancho amigo, tem valor, que agora quero tratar do desencanto do senhor Montesinos, que para esse fim fui aqui trazido.
Canta D. Quixote a seguinte
ÁRIA
Ó magia bárbara
de fúria indômita,
humilha tímida
o fero encanto
do teu furor,
que o braço rígido
com fúria ríspida
vence colérico
a ira ingente
de teu rigor.
Torna a haver terremoto.
Sancho. Ai, senhor! Que diabo de ilha, ou de cova é esta? Eu nela não quero enterrar-me! Va¬mos, senhor!
D. Quixote. Sombras vãs, encantadores malévo¬los, apesar de vossos encantos, hei de ver a Montesinos. Ó Montesinos? Montesinos? (Sai Montesinos).
Montesinos. Sejas mil vezes bem-vindo, ó sempre valeroso D. Quixote de la Mancha, flor, nata, e escuma dos cavaleiros andantes; só tu tiveste valor para me desencantares, ressuscitando a antiga an¬dante cavalaria. Chega a meus braços.
D. Quixote. Valeroso Montesinos, não tens que me agradecer esta ação; pois o que faço por ti faria por outro qualquer, que assim mo insinuam as leis da cavalaria.
Montesinos. Chega a meus braços, tu, célebre escudeiro Sancho Pança, pois também participas um esgalho deste laurel .
Sancho. Sou criado de vossa mercê. Eu já estou desmamado, graças a Deus; eu não quero que vossa mercê me desmame. Assim sou eu asno, que me chegue àquelas barbas! Peça de baeta animada e escova vivente me parece o tal Montesinos. (À parte).
Montesinos . Já que aqui viestes, ilustre D. Quixote, a desencantar-me, peço-vos que desencanteis também a Senhora Belerma, que foi dama do valente cavaleiro Durorante, que por causa dele vive aqui encantada.
D. Quixote. Por mulher, e por ser dama de um tão valente cavaleiro, me toca desencantá-la. Aonde está?
Montesinos. Agora a vereis.
Mudam-se os bastidores, e aparece um jardim com figuras de pedra e sairá Belerma.
Belerma. Prostrada a vossos pés, valeroso D. Quixote, vos rendo as graças de tão generoso capricho. Escutai com melhor acento o meu agradecimento.
Canta Belerma o seguinte
MINUETE
Belerma mísera
suspira e sente
a morte dura
de seu valente,
galhardo amor.
Agora em cânticos
louvar procura
o braço ingente
de um glorioso,
feliz, ditoso
libertador.
D. Quixote. Formosa Belerma, enxugai esses aljôfares ; não tomeis o ofício da aurora, sendo vós um sol.
Sancho. Ah, Senhora Belermina, dê-me vossa mercê esses aljôfares para levar à minha Teresa Pança. Não os deite fora.
Torna a cantar Belerma.
Quixote ínclito,
em cujo peito
Cupido e Marte
fazem perfeito
laço de amor,
teu braço bélico,
por que se exalte
já com efeito,
em males tantos,
enxugue o pranto
que amor causou.
D. Quixote. Que te parece, Sancho, o que se encerrava nesta cova?
Sancho. Senhor, palavras y plumas el viento las lleva. Vamo-nos, que não sei o que me adivinha o coração.
Na última cláusula muda-se a aparência, e há terremoto, e levam pelos ares a D. Quixote e Sancho.
D. Quixote. Belerma, Montesinos, vede que os encantadores me levam para vos não desencantar; bem vistes a minha vontade.
Sancho. Ai que rica cousa! Agora sim; voemos, senhor, até cair de uma bala. (Aparece o monte em cima).
D. Quixote. Oh, mal hajas, infame homem, que nos tirastes da maior suavidade e consonância que se pode imaginar! Por tua culpa não desencantei a Montesinos e Belerma.
Sancho. Por tua culpa, bêbado, não desencantei as minas e a ilha encantada. Ai que estou mui cansado de voar! Diga-me, senhor, aonde está a mina, que achamos? Tudo foram vôos; por isso, agora tudo são penas. Diga-me vossa mercê que me meta eu noutra cova! Para aqui!
D. Quixote. Sancho, bem viste que da minha parte fiz o que devia, pois, destemido e valeroso, cheguei a penetrar as entranhas desse abismo; com que, se nesta ocasião não consegui o que desejava, em outra o conseguirei, e tu alcançarás essa tão desejada e alta ilha.
Sancho. Antes creio que nunca a alcançarei.
D. Quixote. Por quê?
Sancho. Porque, como sou curto dos nós, não poderei alcançá-la pela altura dos graus.
D. Quixote. Ora anda comigo; não te agastes, que sem dúvida serás premiado.
CENA VIII
Mutação de selva
D. Quixote. Há dias que trago no pensamento uma cousa, que me tem causado grande cuidado: dar-se-á caso que os meus inimigos encantadores tragam transformada a beleza da senhora Dulcinéia em a figura de Sancho Pança! E os motivos que tenho para isso, é ver a paciência com que este escudeiro me atura as minhas impertinências, sem salário algum; e ver que jamais foi possível ver eu a Dulcinéia no seu original e nativo resplendor. Tudo pode ser que seja; pois se lêem nos antigos livros da cavalaria andante outras transformações de ninfas, ainda em mais ruins figuras, qual a de Sancho Pança; e porque este pensamento não é fora de conta, bom será averiguá-lo, que a diligência é mãe da boa ventura. (Sai Sancho).
Sancho. Senhor, o Rocinante está esperando que vossa mercê o cavalgue, e tem dado tais relinchos, pulos e ventosidades, que suponho nos prognostica alguma boa ventura.
D. Quixote. E, se bem reparo agora nas feições deste Sancho, lá tem alguns laivos de Dulcinéia; porque sem dúvida Sancho às vezes o vejo com o rosto mais afeminado, que quase me persuado está Dulcinéia transformada nele.
Sancho. Meu amo está no espaço imaginário! (À parte). Ah, senhor, toca a cavalgar, que o rocinante está selado e o burro albardado. Senhor, vossa mercê ouve?
D. Quixote. Sim, ouço. Que seja possível, prodigioso enigma de amor, galharda Dulcinéia del Toboso, que os mágicos antagonistas de meu valor te transformassem em Sancho Pança.
Sancho. Ainda esta me faltava para ouvir e que aturar! (À parte). Que diz, Senhor? Está louco? Com quem fala vossa mercê?
D. Quixote. Falo contigo, Sancho fingido, e com Dulcinéia transformada.
Sancho. Se vossa mercê algum dia tivesse juízo, dissera que o tinha perdido. Que Sancho fingido, ou que Dulcinéia transformada é esta?
D. Quixote. Não sei como agora fale, se como a Sancho, se como a Dulcinéia! Vá como quer que for. Saberás que os encantadores têm transformado em tua vil e sórdida pessoa a sem igual Dulcinéia. Vê tu, Sancho amigo, se há maior desaforo, se há maior insolência destes feiticeiros, que emascarar o semblante puro e rubicundo de Dulcinéia com a máscara horrenda de tua torpe cara.
Sancho. Diga-me, senhor, por onde sabe vossa mercê que a Senhora Dulcinéia está transformada em mim?
D. Quixote. Isso é o que tu não alcanças, simples Sancho. Pois sabe que nós, os cavaleiros andantes, temos cá um tal instinto, que nos é permitido conhecer aonde está o engano e transformação pelos eflúvios que exala o corpo, e pela fisionomia do rosto.
Sancho. Basta que conheceu vossa mercê pela simonetria do rostro ! Pois, senhor, que parentesco carnal tem a minha cara com a da Senhora Dulcinéia? Ora eu até aqui não cuidei que vossa mercê era tão louco! Cuido que nem na Vida de vossa mercê se conta semelhante desaventura.
D. Quixote. Quanto mais te desconjuras, mais te inculcas que és Dulcinéia. Deixa-me beijar-te os átomos animados desses pés, já que me não permites tocar com os meus lábios o jasmim dessa mão. Dulcíssima Dulcinéia! (Chega-se D. Quixote para abraçar a Sancho).
Sancho. À que del-rei, senhor, que não sou Dulcinéia. Tire-se lá; olhe que lhe dou uma canelada.
D. Quixote. Ora, meu Sancho, dize-me aqui em segredo se és Dulcinéia, que eu te prometo um prêmio!
Sancho. Como, senhor, lho hei de dizer? Sou tão macho, como vossa mercê.
D. Quixote. Sancho, nesse mesmo dengue agora confirmo mais que és Dulcinéia.
Sancho. Ora leve o Diabo o dengue! Que queira vossa mercê que à força seja eu Dulcinéia ensanchada, ou Sancho endulcinado! Ora, pois, já que quer que eu seja Dulcinéia, chegue-se para cá, que lhe quero dar dois coices.
D. Quixote. Tu me queres dar coices? Agora vejo que não és Dulcinéia; pois Dulcinéia, tão formosa e tão discreta nunca podia ser besta, nem ainda transformada, para dar o que me ofereces com a tua grossaria. (Dentro, instrumentos).
D. Quixote. Não ouves, Sancho; uma suave harmonia?
Sancho. É verdade! Espere vossa mercê, que lá vem voando o que quer que é.
Desce a musa Calíope em uma nuvem, e D. Quixote e Sancho se lhe põem de joelhos.
D. Quixote. Soberana Ninfa.
Sancho. Ninfa soberana.
D. Quixote. Iris deste horizonte.
Sancho. Arco-da-velha deste horizonte.
D. Quixote. Que rasgando diáfanos vapores…
Sancho. Que rasgando nuvens de papelão…
D. Quixote. Te ostentas deidade.
Sancho. Te ostentas já de idade.
D. Quixote. Que queres de um cavaleiro andante?
Sancho. Que queres de um escudeiro, tolhido de pés e mãos?
Calíope. Valente D. Quixote de la Mancha, Cavaleiro dos Leões, eu sou a musa Calíope, a primeira e principal das nove que assistem no monte Parnaso. Aqui venho a teus pés, enviada por meu amo, o senhor Apolo, o qual, como sabe que tens professado a estreita religião da cavalaria andante e tens de obrigação o desfazer agravos, socorrer aflitos, e restaurar honras perdidas, por essa causa te manda pedir encarecidamente queiras ir ao Parnaso, aonde se ele acha, cercado de uns poetas malédicos, que o querem despojar do trono; e juntamente para reformares a Poesia, que se acha quase arruinada; para o que eu da minha parte, como tão interessada neste desempenho, te suplico com o suave de minhas vozes, pois é certo que a música tem virtude para atrair os corações mais duros.
Sancho. Aqui nos encaixa uma ária à queima roupa.
Canta Calíope a seguinte
ÁRIA
Se um gigante inficionado
morre infame desmaiado
entre as mãos de teu valor,
quem haverá que te resista,
quando o teu braço conquista
a um gigante disfarçado
entre as garras de um leão?
D. Quixote. A dificuldade está no modo com que hei de ir ao Parnaso; pois sei que o meu Rocinante não tem asas, como o Pégaso.
Sancho. E o meu burro só tem asas nos pés para fugir.
Calíope. O modo com que haveis de ir ao Parnaso é desta sorte.
Voam na nuvem Calíope, D. Quixote e Sancho, e aparece o Parnaso, e canta o
CORO
Atenção, silêncio,
que neste de Arcádia famoso jardim
se ostenta galhardo o délfico Apolo
em músicas gratas, em metros sutis.
Atenção, silêncio;
as fontes não riam,
as aves não cantem,
por que não perturbem do verde bicórnio
o cântico grave de musas gentis.
CENA IX
Mutação de selva, e o monte Parnaso e poetas.
Apolo. Esperai, bastardos filhos de Apolo, que cedo virá quem me vingue de vossas injúrias.
Poetas. Já não te reconhecemos, ó Apolo, por deus da poesia; pois qualquer de nós é um Apolo, e cada idéia nossa uma musa.
Apolo. Assim vos atreveis a profanar o decoro que se deve aos meus apolíneos raios? (Sai D. Quixote, Sancho e Calíope).
Poetas. Toca a investir ao Parnaso.
Apolo. Em boa hora venhas, valente D. Quixote, que só a tua espada me pode segurar o trono e o laurel. Vem, vem a vingar-me destes poetazinhos, que sem mais armas que a sua presunção, querem não só competir com o meu plectro, mas ainda intentam despojar-me do Parnaso; e, como as armas e as letras são tão fiéis companheiras, quero-me valer das tuas armas para a restauração de minha ciência; e como esta violência, que se me faz, não desmerece os empregos da tua cavalaria, peço-te que me socorras.
D. Quixote. Senhor Apolo, eu tomo sobre mim o seu desagravo, e já desde agora se pode assentar bem nesse trono, que dele ninguém o há de arrancar.
Sancho. Senhor meu amo, eu cuido que estou sonhando. Que vossa mercê entre no Parnaso, não é muito, porque é louco; porém eu, que, sendo um ignorante, também cá esteja, é o que mais me admira; e daqui venho agora a concluir que não há tolo que não entre hoje no Parnaso.
D. Quixote. Diga-me, senhor Apolo; e como se chamam os poetas que tanto o perseguem?
Apolo. Essa é a desgraça, D. Quixote; que os poetas que me perseguem não são de nome; e contudo cada um cuida que é mais do que eu mesmo.
D. Quixote. Dizei-me, poetas de água doce; dizei-me, rãs, que grasnais no charco da Cabalina ; dizei-me, cisnes contrafeitos, que vos banhais nos lodos da Hipocrene, com que motivo quereis competir com o deus da Poesia?
Poetas. Porque esse Apolo, como não inspira, não merece o nome de Apolo; e assim queremos tomar-lhe o Parnaso, e reparti-lo entre nós.
Sancho. Senhor, não se meta a brigar com os poetas, que são piores que gigantes. Veja vossa mercê que eles trazem um exército de dez mil romances, quatro mil sonetos, duzentas décimas, oitenta madrigais, e um esquadrão de sátiras volantes em silva, que arranha. Veja bem em que se mete.
D. Quixote. Nada me assombra; porque eu só com esta espada hei de vencer a quantos poetas há no mundo. Cerra, Espanha ; viva Apolo, e morram os traidores! (Há bulhas e gritos, entre D. Quixote, Sancho e poetas).
Apolo. A eles, meu D. Quixote, que a vitória é nossa!
Sancho. À que del-rei, que estou passado de parte a parte com um soneto em agudos!
D. Quixote. Já fugiram como mosquitos.
Sancho. Avança, que com esta gente sou eu gente.
D. Quixote. Já, glorioso Apolo, podes cantar a vitória.
Apolo. Cantem as musas Euterpe e Terpsícore o meu triunfo.
Canta a Musa Euterpe a seguinte
ÁRIA
De Quixote o braço forte
se ouvirá no meu concento;
pois que canta o vencimento
dessas fúrias de um traidor.
Se animoso deu a morte
a quem morte dava a tantos,
viva, viva em doces cantos,
pois que vence ao vil Piton.
Canta Terpsícore a seguinte
ÁRIA
Pois vence Apolo
O monstro altivo,
repita Eolo
já sucessivo,
que brilha vivo
seu resplendor;
e assim as flores
lhe dêem grinaldas
de várias cores,
já consagradas
a seu valor.
Apolo. Vivas mil anos D. Quixote; e, como sei que não militas por prêmio, por essa causa te não premeio; mas na mesma ação que obraste tens o maior prêmio; como também agradeço a ajuda de teu criado Sancho Pança.
Sancho. Valeu de muito a minha ajuda na retaguarda. Assim, em prêmio de meus serviços, peço a V. Paternidade, senhor Apolo, que me conceda um lugar, o primeiro que vagar no Parnaso, para um filho meu, que é mui inclinado à poesia, de sorte que tem roído quantas unhas há em minha casa, que todos as tínhamos grandes.
Apolo. Pois que ofício quereis?
Sancho. Cascavel do Parnaso.
Apolo. Eu vo-lo dou por três vidas.
Sancho. Em três vidas, senhor? Ora não há prazo, que não chegue! E para melhor agradecimento, e em aplauso desta vitória, já que sou poeta, pois estou no Parnaso, quero cantar o triunfo. Toquem as senhoras musas e o Pégaso faça o compasso.
Canta Sancho a seguinte
ÁRIA
Se hoje o meu cantar
Um zurro há de ser,
quero começar:
an, an, an, an!
E se os poetas
galo posso ser,
cantarei aqui
qui quiri qui,
e logo acolá
cá cará cá.
Porque canto só,
Có coró có.
Mas melhor será
tornar a dizer
o que cantei já:
an, an, an, an!
Canta o coro, e dá fim à primeira parte.
PARTE II
CENA I
Mutação, metade de selva e outra metade de mar; e junto à praia um barco e uma azenha ; e no dito barco se embarcará D. Quixote e Sancho, e ficarão atados o cavalo e o burro, e a seu tempo sairão da azenha dois homens com paus nas mãos.
D. Quixote. Já estamos em terra de Aragão. Este é o famoso rio Ebro. Na verdade, Sancho, que este país é mui deleitável e ameno. Que te parece, Sancho? Não respondes? Estás mudo?
Sancho. Digo que não quero responder palavra, e tenho dito; meta-se lá com a sua vida e deixe-me.
D. Quixote. Sem dúvida estás arrependido de me servires!
Sancho. Como que estou? Mais me valera a mim ser sombreireiro , que é o pior ofício que há no mundo, do que servir a vossa mercê.
D. Quixote. Pois tão mal te tem ido comigo?
Sancho. Não é nada vir eu daquela guerra do Parnaso moído e remoído a conta de vossa mercê, e não achar esta maldita ilha, e só achar um formoso arrocho que me arrombasse as alcatras?
D. Quixote. Tu tens a culpa. Quem te manda seres fraco? Ora tem paciência, sofre, que a ilha algum dia aparecerá. Mas espera. Não vês nas margens do rio um barco atado, sem velas, nem remos?
Sancho. E por sinal, que é cacilheiro.
D. Quixote. Sabes aonde estamos?
Sancho. Sei muito bem.
D. Quixote. Aonde?
Sancho. Estamos no Teatro do Bairro Alto.
D. Quixote. Pois sabe que estamos metidos na maior empresa do mundo.
Sancho. Bem aviados estamos! Não digo eu que vossa mercê é doido confirmado?
D. Quixote. Sancho, aquele barco, que vês atado àquele álamo, não está ali sem grande mistério.
Sancho. É porque vossa mercê de tudo faz mistério; e, sabida a conta, não é nada.
D. Quixote. Alguma pessoa está em grande perigo de honra ou vida; pois costumam muitas vezes os astros arrebatarem os cavaleiros andantes dentro em alguma nuvem, ou pôr-lhe um barco à vista, para que se embarquem; e, indo pelo rio abaixo por si mesmo o barco, lá vai dar aonde há o perigo; com que, Sancho, ata os cavalos a esse tronco; metamo-nos no barco e vamos a acudir a essa grande necessidade.
Sancho. Deixe-me vossa mercê fazer primeiro as minhas; que é razão que acuda primeiro às minhas necessidades do que às alheias.
D. Quixote. Vamos, Sancho, que aqui a dilação é perigosa.
Sancho. Deixe-me vossa mercê primeiro ourinar, para irmos na maré do mijo.
D. Quixote. Deixa, Sancho, as cançonetas; ata os cavalos, e embarquemo-nos.
Sancho. Senhor, considere vossa mercê o que faz; olhe que andar pelo mar não é o mesmo que andar pela terra; tome exemplo na discretíssima raposa, que nunca se quis embarcar; donde ficou impresso na memória dos homens o ditado: Por onde anda a raposa. Com que, senhor, montemos e fujamos deste barco a vela e a remo.
D. Quixote. Olha, Sancho, as ilhas não se acham por terra, senão no mar; e talvez que para teu bem esteja aqui este barco, como quem diz: Embarca-te, Sancho, que hás de achar uma ilha.
Sancho. Com que os barcos também falam!
D. Quixote. Isso é figura que tu não alcanças; segue-me, que eu me embarco já.
Sancho. Senhor, eu já estou resoluto a morrer afogado: vamos com Deus; mas parece mui grande tirania deixar o meu burro, fiel companheiro de tantos anos, a quem devo mais do que a meu pai, e a minha mãe.
D. Quixote. Bem podes estar seguro, que a mesma pessoa que pôs aqui este barco terá cuidado de nos guardar os animais, que assim o contam as histórias impressas.
Sancho. Uma vez que está em letra redonda, sem dúvida que se há de cumprir à risca. Deus seja comigo.
Ata Sancho o cavalo e o burro; embarcam-se, e logo irá o barco pelo rio abaixo, até chegar à azenha, e zurra o burro.
Sancho. Ah, burro do meu coração! Bem te entendo o que queres dizer nesse zurro; mas não te posso ser bom; tem paciência, que bem sei que em deixar-te dei cos burros na água.
D. Quixote. Vê, Sancho, a serenidade com que anda este barco!
Sancho. Senhor, eu já estou enjoado: apare lá, que quero vomitar. (Vomita).
D. Quixote. Quando nada, Sancho, estamos junto à linha, e temos andado quatrocentas léguas turquescas, que fazem das nossas novecentas e meia.
Sancho. Como pode ser isso, se não temos andado duas braças, e tanto, que ainda ali se está vendo o meu burro e o seu Rocinante?
D. Quixote. Cala-te, que tu não entendes da náutica. Se tu souberas o que são coluros, tropos, linhas, zodíacos e balestilhas, tu viras claramente o quanto temos andado.
Sancho. Ora com termos andado tanto, ainda não encontramos nenhuma ilha para eu governar?
D. Quixote. Cala-te, que até o fim ninguém se pode chamar desgraçado.
Sancho. Sim, senhor, pela regra geral que diz que sempre atrás há sorvas.
D. Quixote. Lá se descobre, Sancho, um castelo encantado; ali sem dúvida está a afligida pessoa que buscamos. Que felicidade!
Sancho. É verdade; mas eu cuido que é a ilha! Vamos a ela.
Chegam ao pé da azenha; e, abrindo-se a porta, sairão uns homens com varas na mão, empurrando o barco.
Homens. Vocês vêm doidos, homens do Diabo?! Aonde querem meter este barco? Não vêem que isto é uma azenha, donde a água corre tão furiosa, que despenhará e despedaçará esse barco nas pedras da mó? Arreda para lá!
D. Quixote. Olha os gigantes encantadores. Ó canalha, largai a quem tendes preso nessa torre; se não, com esta espada reduzirei a cinzas a todos.
Sancho. Senhor, que nos perdemos sem remédio! 0 barco com a corrença da água vai levado para dentro das pedras! Ai! Ai, que se vira!
Com muita gritaria de todos se vira o barco, e D. Quixote e Sancho vêm nadando até chegar à praia, donde estão os cavalos, e o barco dará na praia e nela fica virado.
Sancho. Ai, que me afogo, senhor! Briguemos agora com as ondas.
D. Quixote. De boa escapamos, Sancho; beijar quero a terra, que me livrou da morte.
Sancho. Senhor, beije-me aqui, que tudo é terra. Ai, ainda não creio! Diga-me, por vida sua: ainda estamos no rio, ou já estamos em terra firme?
D. Quixote. Graças a Dulcinéia, que estamos livres do perigo. Oh, malévolos encantadores, que me perseguis por mar e terra, só por não livrar os miseráveis aflitos!
Sancho. O que eu sentia não era o morrer: era morrer afogado em água, podendo morrer afogado em vinho. E tu, burro dos meus olhos, dá-me mil abraços e dois beijos, que já cuidava que te não via mais em minha vida. (Saem dois homens com paus nas mãos).
Homens. Quem fez aquilo no meu barco?
Sancho. Ninguém fez aquilo, por vida minha, e cheire-o vossa mercê e verá.
Homens. Hão de pagar-me o meu barco; se não, com este varapau lho tirarei do corpo, maganos vadios.
D. Quixote. Ó canalha rude, ó vil prosápia de Aqueronte, assim se fala, com os cavaleiros andantes? Tomai!
Sancho. Ai, que estou varado! Confissão, que me alombaram.
CENA II
Mutação de montaria de caça, com caçadores; um Fidalgo, uma Fidalga, etc.
Fidalgo. Sem dúvida, senhora, que estimarei que neste dia todos os brutos se prostrem rendidos, para que tenhais o divertimento que pretendeis.
Fidalga. Bem conheço, senhor, que o vosso intento não é outro mais que o buscares ocasiões, com que me divirta da cruel melancolia que me persegue.
Fidalgo. Se bem que escusadas eram armas; pois, à vista desta beleza, quem não cairá morto? E a terem os brutos notícia da vossa vinda a este monte, eles mesmos buscariam o encontro, para terem a fortuna de serem despojos do vosso braço.
Fidalga. Senhor, deixemos por ora lisonjas; pois bem reconheço o que tenho em mim, e o que me fazeis é nascido mais de vosso capricho, que do meu merecimento; mas, se me não engano, lá vejo vir dois cavaleiros.
Fidalgo. Muito estimo, pois eles nos ajudarão a passar a tarde na caça, para o que os convidaremos. (Saem D. Quixote e Sancho a cavalo).
Sancho. Ora graças a Deus, que estamos entre animais. Diga vossa mercê agora que isto também é encanto; e que aquela mocetona que ali está, e mais aquele rufião, que são gigantes.
D. Quixote. Sancho, eu não sou tão tolo como me fazes; bem sei o que é caçada, e o que são gigantes. Aquela deve ser alguma grande senhora, que anda caçando. É forçoso que a vamos cumprimentar. Pega no estribo, que eu me apeio.
Sancho. Vá descendo, que eu lhe vou pegar na espora.
Ao apear-se D. Quixote, cai do cavalo, e Sancho também ao apear-se fica debaixo do burro, e acode o Fidalgo e a Fidalga.
D. Quixote. Sancho de todos os diabos, escudeiro infernal, acode-me, que fiquei descomposto.
Sancho. Pois eu fiquei composto, que fiquei coberto com a albarda do burro.
Fidalgo. Senhores, tenham mão; levantem-se.
Fidalga. Honrado cavaleiro, dai-me cá a mão; levantai-vos.
D. Quixote. Diana destes bosques, por caçadora e por planeta, se a medicina da queda havia de ser tão soberana, não me arrependo de haver caído; e mais, quando o cair aos pés de vossa grandeza, é levantar-me ao auge da maior felicidade.
Fidalga. Sois discreto.
Sancho. Só eu caí no que era caça. Digo, senhora, que o cair aos pés de vossa magnífica e excelencial altura foi porque caí do meu burro, com a pressa de ir pegar no estribo a meu amo; mas vejo agora que, se um burro me derruba, uma jumenta me levanta.
Fidalga. Como vos chamais, honrado cavaleiro?
D. Quixote. D. Quixote de la Mancha.
Fidalgo. Que dizeis? Não sabeis o quanto estimo ver-vos; pois há muito tempo que a fama do vosso nome tem granjeado a atenção de toda a Espanha.
Fidalga. Marido, este é o célebre D. Quixote? Temos muito que rir e nós o faremos mais doido. Vós não sois por outro nome o Cavaleiro da Triste Figura?
D. Quixote. Algum dia tive esse apelido, mas agora, depois que matei um leão, me chamo o Cavaleiro dos Leões.
Fidalga. E vós não sois Sancho Pança?
Sancho. Por meus negros pecados. Oxalá que nunca o fora!
Fidalga. Sancho, não vos agasteis, que daqui em diante achareis em mim o amor de mãe, e vos quero para meu perrexil.
Sancho. Para Perrexil?! Isso não; se vossa altura me quer para alcaparra, com muito boa vontade.
Haverá muita gritaria, e sairá um porco, que dá com Sancho no chão, e D. Quixote o mata.
D. Quixote. Espera, cerdoso bruto, que te farei humilhar aos pés desta deidade.
Sancho. Ó minha senhora, diga àquele javali que esteja quieto, e que não entenda comigo. Ai, Jesus! (Cai). Ah, senhora! Ah, senhor D. Quixote! Ai, que me desmaio!
D. Quixote. Senhora, já morreu o bruto. Sinto não ser um gigante para o pôr aos pés de vossa grandeza.
Fidalga. Sancho, Sancho, bem podes tornar em ti, que o javali já está morto.
Sancho. Uma vez que está morto, mande-o guisar, que o comerei a bocados.
Fidalga. Sancho, não cuidei que éreis tão fraco.
Sancho. Senhora, isto não é fraqueza; é medo. Tomara que vossa altura me tirara o quebranto, que não posso acabar comigo ser valente uma vez sequer. Digo que o tenho, porque me vejo quebrantado.
Fidalgo. Senhor D. Quixote, vossa mercê há de-se servir de vir para meu palácio descansar um par de dias.
D. Quixote. Mercês de senhores não se rejeitam. Irei para criado dessa nobre casa.
Fidalga. Sancho, vós haveis de fazer hoje penitência conosco.
Sancho. Isso não; penitência faça-a quem quiser, que eu ainda me não acho com a idade precisa. Vamos comer alguma cousa.
CENA III
Mutação de sala, onde estará uma mesa com cadeiras.
Fidalgo. Senhor D. Quixote, sente-se na cabeceira da mesa.
D. Quixote. Isso não. Vossa grandeza há de assentar-se, que em tudo tem o primeiro lugar.
Fidalgo. Vossa mercê é que tem o primeiro lugar nesta casa; sente-se.
Sancho. Acerca disso, contarei uma história que sucedeu não há vinte anos. Convidou um fidalgo do meu lugar, mui rico e principal, porque descendia do Netuno do Rossio, que casou com D. Rigueira das Fontainhas, que foi filha de D. Chafariz de Arroios, homem sobre trancão e seco, o qual se afogou em pouca água, por causa de um furto que lhe fizeram, de que se originou aquela célebre pendência das enxurradas, na qual se achou presente o senhor D. Quixote, que veio ferido em uma unha. Não é verdade, senhor?
D. Quixote. Acaba já com essa história, antes que te faça calar.
Fidalga. Deixe vossa mercê falar a Sancho, que gosto muito de ouvi-lo, que é mui discreto .
Sancho. Discretos anos viva vossa altura. Como vou contando, vai senão quando… Aonde ia eu, que já me esquece?
Fidalga. Na pendência das enxurradas.
Sancho. Ah, sim, lembre-me Deus em bem. Este fidalgo, que eu conheço como as minhas mãos, porque da sua à minha casa não se metia mais que uma estrebaria, convidou, como vou dizendo, este fidalgo a um lavrador pobre, porém honrado, porque nunca pariu.
D. Quixote. Acaba já com essa história.
Sancho. Já vou acabando: chegando o tal lavrador à casa do fidalgo convidador, que Deus tenha a sua alma na Glória, que já morreu, e por sinal dizem que tivera a morte de um anjo, mas eu não me achei presente, que tinha ido não sei donde…
D. Quixote. Por minha vida, que acabes. Se não, te moerei os ossos.
Sancho. Foi o caso que, estando os dois para sentar-se à mesa, o lavrador porfiava com o fidalgo que tomasse a cabeceira da mesa; o fidalgo porfiava também que a tomasse o lavrador; tem daqui, tem dali, até que, enfadado o fidalgo, disse ao lavrador: Assentai-vos, vilão ruim, aonde vos digo, porque onde quer que eu me assentar, essa é a cabeceira da mesa. Entrei por uma porta, saí por outra, manda El-Rei que me contem outra.
D. Quixote. Tu mo pagarás, Sancho, por estas. Bem te entendi a história.
Sancho. Mate-me Deus com quem me entende. Senhor, faço saber a vossa altura que o senhor D. Quixote, meu amo, me tem prometido uma ilha, para eu ser governador dela, e até aqui vivo em esperanças; mande vossa altura que ma faça boa; se não, não o quero mais servir.
Fidalga. Eu vos prometo dar uma ilha; por tão pouco não vos vades do serviço de vosso amo.
Sancho. Senhora, se tal ilha alcanço, não se me dá de quantos reinos tem o mundo.
Fidalga. Fazei um memorial e nele vos despacharei.
D. Quixote. Que importa que vossa grandeza faça a Sancho a mercê da ilha, para governá-la, se ele nega haver amor?
Sancho. E que tem cá o amor com a ilha?
D. Quixote. Homem, se não tiveres amor, como hás de governar bem aos moradores dela?
Sancho. Venha a ilha, que eu terei amor aos meus súditos e lhes farei muito bem a caridade.
D. Quixote. Isso sim; mas tu negas que há Dulcinéia, e assim negas que há amor.
Sancho. Eu não nego que há deidades, a quem se deve render tributo no templo da formosura; mas que haja Dulcinéias… ex parte objecti concedo, a parte rei nego; e mais de que, para mostrar o que é amor, melhor me explicarei cantando.
Canta Sancho a seguinte
ÁRIA
Viram já vocês um gato,
que, miando pela casa,
tudo arranha, tudo arrasa,
e caçando o pobre rato,
este guincha, que o não rape;
dali diz-lhe a moça sape,
e o gato responde miau,
e a senhora grita xô?
Dessa sorte amor tirano
faz das unhas duras frechas,
que, atrepando da alma às brechas
corações, frossuras, bofes
come, engole e faz em pó.
Haverá dentro terremoto, e sairá um Diabo a cavalo em um burro.
Diabo. Qual de vós é D. Quixote de la Mancha?
D. Quixote: Sou eu; que me quereis?
Diabo. Qual é Sancho Pança?
Sancho. Não sou eu; que me quereis?
Diabo. Diga, sob pena de morte.
Sancho. É este criadinho de vossa mercê.
Diabo. Pois esperai aqui ambos, que vem Merlim tirar do desencanto a senhora Dulcinéia del Toboso. (Vai-se).
Sancho. Eu não vi Diabo mais cortês! Este Diabo devia ser bem criado, e filho de bons pais, porque trata a Dulcinéia por senhora.
D. Quixote. Oh, quem se vira já na tua vista, amada Dulcinéia!
Fidalga. A logração vai saindo boa: mui tolo é o tal D. Quixote, e o criado! (À parte).
Sairá um carro, donde virá Merlim com barbas, e Dulcinéia, e outras figuras, trazendo velas acesas nas mãos.
D. Quixote. Ó Sancho, tal estou de contente e alegre, que tenho este dia pelo mais feliz de quantos têm havido.
Sancho. Senhor meu amo, vossa mercê não vê lá em cima do cucuruto do carro uma coisa como espantalho de figueira?
D. Quixote. Sim. Que será aquilo?
Sancho. Que será?! É a Senhora Dulcinéia del Toboso; não diga nada a ninguém.
D. Quixote. Ai, Sancho amigo, é possível que os meus olhos tiveram tal fortuna, que chegaram a ver aquela belíssima, formosíssima, altíssima e sapientíssima Dulcinéia del Toboso, inveja de Vênus, e ardor de Cupido?
Sancho. Tomara ter dois ovos para frigir em meu amo, que se está derretendo como manteiga.
Dulcinéia. D. Quixote, Atlante do valor, coluna do templo de Marte, non plus ultra das valentias, braço direito de Aquiles, coração de Pirro; tu, que sabes entressachar as delícias de Vênus com os rigores de Marte, é chegada a ocasião de me desencantares e livrares do poder destes magos encantadores, que por tua causa e por emulação do teu valor, me tem encantado.
Sancho. É lástima! Senhor, acudamos, que a pobre senhora está posta na espinha. Coitadinha! Coitadinha!
Dulcinéia. Estás mudo? Não me respondes, D. Quixote? Ora, já que o teu amor te não move, movam-te as minhas lágrimas, misturadas com o terno de minhas vozes.
Canta Dulcinéia a seguinte
ÁRIA
Que importa que a uma fera
(Ai, infeliz!) tu venças,
se as iras imensas
de um monstro cruel, irado,
não podes superar?
Porque o valor galhardo
que adorna tanta esfera
é injúria ao teu ser,
se a mim, que sou mulher,
não sabes libertar.
D. Quixote. Senhora, até aqui estive arrebatado à esfera de tua formosura, por cuja causa não te respondi. Não quero dizer por palavras o meu oferecimento, e só por obras quero significar o quanto devo fazer por ti, que és o espírito que me animas no corpo de minha alma. Dize o que queres que eu faça, para livrar-te desse encantamento.
Sancho. São mãos perdidas. Agora sim, que, se vossa mercê brigar com trezentos gigantes, digo que fará muito bem, porque a ocasião veio a pedir de boca, e a senhora Dulcinéia é comezinha.
Dulcinéia. D. Quixote, já me vai entrando o acidente encantado, que me impede o falar; pois só tenho licença para isso um quarto de hora; e assim o senhor Merlim te dirá quem há de ser o instrumento do meu desencanto, o como e quando.
D. Quixote. Oh, que dor! Agora lhe deu o encantado acidente na boca, para não falar.
Sancho. Se foi na boca o acidente, feria de gota coral, porque ela a tem bem vermelha.
Merlim. D. Quixote valente, esta, que vês, é a tua amada Dulcinéia, que por teu respeito a quero desencantar; mas há de ser levando Sancho Pança trezentos açoites bem puxados.
Sancho. Diga-me, senhor Merlim, que tem o meu cu com o desencanto da senhora Dulcinéia?
Merlim. Assim o dispõem os astros, e os fados o determinam.
Sancho. Pois entenda que ficará encantada para secula seculorum, que livre está que eu me açoite por ninguém.
D. Quixote. Sancho, coração de pedra, alma de cântaro, entranhas de pedrenal, não te movem aquelas lágrimas? Leva os açoites, por tua vida; tem lástima daquela flor, que apenas nasceu no jardim da beleza, logo encontrou desmaios nos encantos.
Sancho. À que del-rei! Digo que me não quero açoitar; açoite-se vossa mercê, já que é penitente de amor.
D. Quixote. Meu Sancho, meu fiel amigo, deixa-te açoitar. Isso que vem a ser? Não negues uma coisa que está na tua mão;
Sancho. Na minha mão nego, no meu cu mais depressa.
Fidalga. Quem não é para aturar trezentos açoites, menos aturará o peso do governo de uma ilha. Ide, que sois para pouco, vilão ruim. Que fazeis vós em fazer o que vos pede uma dama aflita?
Sancho. Senhora, não tem remédio? Se nasci para ser desgraçado, venham esses açoites, cos diabos! Ai, desgraçada ilha, que tanto me custa! Ah, senhor Diabo, haja-se com compaixão comigo, que eu lhe prometo, se me escapo desta, um cu de sorvas com molduras de paparraz. Ai! um, dois, vinte! Ai, cu de minha alma! (Leva Sancho os açoites).
D. Quixote. Cala-te, Sancho; cala-te, que já lá vai! És fiel companheiro!
Sancho. Sou um dardo para ele! Valha-o não sei que diga! Olhe, senhora Dulcinéia, que tais tenho as bebas, por amor de vossa mercê.
Merlim. Já Dulcinéia está desencantada, graças a Sancho Pança!
Fidalgo: Para bem vos seja, senhor D. Quixote, o desencanto da senhora Dulcinéia.
D. Quixote. Será para que vossa grandeza tenha mais uma criada para o servir.
Fidalga. Ora, Sancho Pança, na verdade que fizeste uma ação a mais louvável, que se pode considerar digna de se estampar em cortiça com letras de alvaiade. Logo, logo vos mando ser governador desta ilha; ide, que espero de vós me façais bons serviços, pois sois homem de esperanças.
Sancho. Serviços de esperanças são verdes; entendo que a ilha será nas Caldas.
D. Quixote. Sancho, vê que vais a governar; olha que deves ter diante dos olhos a Justiça.
Sancho. Sim, senhor, eu logo a mando pintar e a porei diante dos olhos.
D. Quixote. Não te corrompas com dádivas.
Sancho. Eu me salgarei, para me não corromper.
D. Quixote. Sancho, em duas palavras: Amar a Deus, e ao teu próximo como a ti mesmo.
Sancho. Amém.
CENA IV
Mutação de sala de azulejos. Saem várias danças, um Meirinho, um Escrivão, e dizem: Viva o nosso Governador Sancho Pança!
Sancho. Enfim, não há coisa nesta vida que senão vença com trabalho! É possível que me veja eu feito governador! De verdade; parece-me que estou sonhando! Ora o certo é que não há coisa como ser escudeiro de um cavaleiro andante! Ah, sô Meirinho, endireite essa vara, e não ma torça à justiça: saiba Deus e todo o mundo que me quero pôr reto com a sua espada.
Meirinho. Ora, já que vossa mercê falou em espada e justiça, diga-me: por que pintaram a Justiça com os olhos tapados, espada na mão e balança na outra, pois ando com esta dúvida, e ninguém ma pode dissolver, e só vossa mercê ma há de explicar, como sábio em tudo?
Sancho. Que me faça bom proveito! Dai-me atenção, Meirinho. Sabei, primeiramente, que isto de Justiça é coisa pintada e que tal mulher não há no mundo, nem tem carne, nem sangue, como v. g. a senhora Dulcinéia del Toboso, nem mais, nem menos; porém, como era necessário haver esta figura no mundo para meter medo à gente grande, como o papão às crianças, pintaram uma mulher vestida à trágica, porque toda a justiça acaba em tragédia; taparam-lhe os olhos, porque dizem que era vesga e que metia um olho por outro; e, como a Justiça, havia de sair direita, para não se lhe enxergar esta falta lhe cobriram depressa os olhos. A espada na mão significa que tudo há de levar à espada, que é o mesmo que a torto e a direito. Os Doutores que falam nesta matéria não declaram se era espada colubrina, loba, ou de soliga; mas eu de mim para mim entendo que desta espada a folha era de papel, os terços de infantaria, os copos de vidro, a maçã de craveiro, e o punho seco. Na outra mão, tinha uma balança de dois fundos de melancia, como a dos rapazes: não tem fiel; nem fiador; mas contudo dá boa conta de si, porque esta moça, se não tem quem a desencaminhe, é mui sisuda. Algum dia podia eu ler de ponto nesta matéria, porque vos posso dizer que criei a Justiça a meus peitos; mas as cavalarias do senhor D. Quixote fizeram-me com que fechasse os livros e desembainhasse as folhas.
Meirinho. Já entendo o enigma. Posso agora mandar vir os feitos para a audiência?
Sancho. Oh, magano! Feitos na audiência! Aqui é secreta? Como se chama esta ilha?
Escrivão. A Ilha dos Lagartos.
Sancho. Pois, quando a crismarem, mudem-lhe o nome e chame-se a Ilha dos Panças, em memória da minha barriga. Pergunto mais: a quanto está a canada de vinho?
Meirinho. A seis vinténs.
Sancho. Logo, logo, com pena de morte, se ponha a dez réis; não quero que por falta de vinho deixe de haver bêbados na minha ilha. Mandai vir as partes para a audiência. (Sai Um homem).
Homem. Senhor Governador?
Sancho. Que quereis ao senhor Governador?
Homem. Senhor Governador, peço justiça.
Sancho. Pois de que quereis que vos faça justiça?
Homem. Quero justiça.
Sancho. É boa teima! Homem do diabo, que justiça quereis? Não sabeis que há muitas castas de justiça? Porque há justiça direita, há justiça torta, há justiça vesga, há justiça cega e finalmente há justiça com velidas e cataratas nos olhos. Senhor Governador!
Homem. Senhor, seja qual for, eu quero justiça.
Sancho. Uma vez que quereis justiça… Olá, ide-me justiçar esse homem em três paus.
Homem. Tenha mão, senhor Governador, que eu não peço justiça contra mim.
Sancho. Pois contra quem pedis justiça?
Homem. Peço justiça contra a mesma Justiça.
Sancho. Pois que vos fez a Justiça?
Homem. Não me fez justiça.
Sancho. Até aqui, ao que parece, o vosso requerimento é de justiça. Ora andai; dizei de vossa justiça em três dias.
Homem. Isso é muito sumário.
Escrivão. Senhor, não saberemos o que pede este homem?
Sancho. Homem, que é o que pedis?
Homem. Peço recebimento e cumprimento de justiça.
Sancho. E de que comprimento quereis a Justiça?
Homem. Seja do comprimento que for, que eu com tudo me contento.
Sancho. Ó Meirinho, ide à gaveta da minha papeleira de chorão da Índia, e entre várias bugiarias que lá tenho, tirai uma Justiça pintada que lá está, e dai-a a este homem, e que se vá embora.
Homem. Senhor, eu não quero justiça pintada.
Sancho. Pois, beberrão, não sabeis que não há nesta ilha outra justiça, senão pintada? Ó Meirinho, lançai-me este bêbado pela porta fora, que nenhuma justiça tem no que pede.
Homem. Viu-se maior injustiça! (Vai-se).
Sai o Meirinho, trazendo preso um homem.
Meirinho. Senhor, este taverneiro foi agora apanhado neste instante deitando água em uma pipa de vinho; que se lhe há de fazer?
Sancho. Água em vinho! Há maior insolência! Ó homem do diabo, e não te caiu um raio nessa mão? Logo seja enforcado sem apelação, nem agravo. Tenho dito.
Taverneiro. Senhor, este Meirinho mente.
Sancho. Isso é outra coisa: uma vez que o Meirinho mente, ide-vos embora. Mas ouvis? Mandai-me um almude desse vinho, que quero ver se tem água.
Taverneiro. Viva vossa mercê muitos anos! (Vai-se. Sai uma mulher).
Mulher. Senhor Governador, venho queixar-me a vossa mercê de uma insolência.
Sancho. Como pede, ide-vos embora.
Mulher. Se vossa mercê ainda me não ouviu, como já me despacha?
Sancho. Pois eu não posso deferir sem ouvir-vos?
Mulher. Senhor, foi o caso: Eu sou uma moça donzela e solteira. Fui pecadora, caí na tentação do Diabo: um magano… Já vossa mercê me entende! E agora, diz que não quer casar comigo.
Sancho. Pois não caseis vós com ele, que esse é o maior despique que há nesta vida.
Mulher. Senhor, eu quero casar, mas ele não aparece; suponho que fugiu.
Sancho. Olá, metam essa mulher na cadeia com uma corrente ao pescoço, e grilhões aos pés, bem carregada de ferros, até aparecer o homem com quem ela quer casar.
Mulher. Senhor, isso é contra a Justiça; veja vossa mercê que eu sou uma mulher que nunca fui presa.
Sancho. Por isso mesmo; andate!
Mulher. Que isto se permita no mundo!
Meirinho. Ainda cá não entrou governador mais reto, nem mais sábio!
Sancho. É para ver! Não, comigo ninguém há de brincar.
Sai outro homem gritando.
Homem. À que del-rei, que me mataram! Não há justiça nesta ilha?
Sancho. Que tens, homem? De quem te queixas?
Homem. Senhor Governador, eu estou passado de meio a meio; não posso falar, porque estou morto.
Sancho. Não podeis falar, porque estais morto?! Olá, tragam a alma deste homem aqui em corpo e alma, e metam-lha à força, para que fale; que não é razão que fique a República ofendida na impugnação do delito.
Homem. Senhor Governador, ouça vossa mercê o caso mais atroz que tem sucedido nesta ilha; prepare os pasmos, tenha pronta a admiração, e desenrole as atenções para me ouvir.
Sancho. Olá, Meirinho, mandai preparar os pasmos, tende pronta a admiração, e desenrolai as atenções, para se ouvirem neste tribunal as queixas deste autor de seu delito; que, assim como a ninguém se pode negar a vista, como dispõe o text. in l. Cacus § Tortus ff. de his, qui metit um olho por outro, e com muitos o provam Pão Mole no cap. das Côdeas, também da mesma sorte o ouvido se não deve fechar para ouvir os queixosos, como dispõe a l. das doze tábuas de Pinho na segunda estância de Madeira, Cod. de Barrotis.
Escrivão. Este homem é um burro de textos!
Sancho. Homem, dizei a vossa querela, que eu tiro a cera dos ouvidos para vos ouvir.
Homem. Senhor, foi o caso…
Sancho. Basta; não me conteis mais; basta que esse foi o caso! Há maior insolência! Que assim se perca o respeito à Justiça! Olá, olá!
Homem. Senhor, escute vossa mercê, que ainda isto não é nada; ouça-me vossa mercê até o fim.
Sancho. Quem ouviu esse caso não tem mais que ouvir, senão logo fazer justiça a torto e a direito. Ó Meirinho, mandai logo levantar uma forca no meu gabinete, para que mais publicamente seja castigado o delinqüente.
Meirinho. Senhor, que delinqüente, se vossa mercê ainda não ouviu quem era?
Sancho. É tal a vontade que tenho de fazer justiça, que logo me sobe a cólera uma mão travessa pelo espinhaço acima; de sorte que, se não me advertis que ainda se não tinha dito quem era o delinqüente, era eu capaz de mandar enforcar a vós, Meirinho, que era a pessoa mais pronta que aqui tinha mais à mão de semear.
Homem. Senhor Governador, faça vossa mercê de conta.
Sancho. Tenho feito de conta; que mais?
Homem. Que indo eu andando, andando, andando…
Sancho. Ainda não acabastes de andar? Arre lá com tal andar! Sois mui bom para andarilho.
Homem. Indo, pois, andando…
Sancho. Andai, homem, isto já está dito; não me façais criar apostemas, que os instantes que tardo em dar execução à justiça são eternidades de penas que me encaixais nas ilhargas.
Homem. Quando eu, eis que ia andando, manso e pacífico, sem fazer mal a ninguém, estava um burro atado a uma porta. Quis passar; pedi-lhe licença; não me respondeu; tornei-lhe a pedir com palavras corteses; e, levantando os pés do chão, pespegou-me com duas pelotas de ferro bem na boca do estômago, de sorte que me fez deitar a bosta pela boca. Este é, senhor, o caso; suplico a vossa mercê que não fique sem castigo este insulto.
Sancho. Não ficará por certo, e juro, à fé de escudeiro andante, e pelas remelas de minha muito desprezada mulher, a Senhora D. Teresa Pança, que há de ver o mundo o exemplar castigo de tanta culpa.
Homem. Ai, senhor Governador, aqui, aqui bem na boca do estômago é todo o meu mal.
Sancho. Vede lá não seja isso fome! A graça é que, se assim como o estômago tem boca tivera dentes, que o tal burro lhe deitava os dentes fora. Dizei-me, homem: esse jumento que vos deu os couces, de que tamanho será?
Homem. Eu não tenho aqui com quem o comparar.
Sancho. Olhai bem para mim; Será da minha estatura?
Homem. É o que pode ser.
Sancho. Bem está; pois vá o Meirinho convosco e cheguem-se ao burro de mansinho e digam-lhe: Preso, da parte do senhor Governador! E bem atarracado o tragam aqui perante mim.
Vão-se o Meirinho e o Homem e trazem o burro.
Meirinho. Eis aqui o delinqüente, preso, que me custou bem a agarrá-lo.
Homem. Senhor Governador, este é o agressor, e este é o que me feriu; ponha-lhe a lei às costas.
Sancho. Vejam vossas mercês quem anda perturbando a República! Dize, burro de Satanás: que mal te fez este homem para o maltratares desta sorte? O diabo do burro não responde; certos são os touros! Ele que se cala, cometeu o delito, assim como nós aqui estamos. Como te chamas, burro? De quem és? Donde moras? Quem é teu pai? Que dizes? A nada o burro se move: deve ser burro velho, pois se cerra à banda e não quer falar. Ó Meirinho, vós conheceis acaso este burro, que sois mais veterano neste País?
Meirinho. Com que vossa mercê se está fazendo de novas?! Vossa mercê não conhece que este é o seu burro, ou o ruço por alcunha? Isto é mal permitido, que talvez o burro, fiado em vossa mercê, ande fazendo estes insultos. Agora veremos a sua justiça. (À parte).
Sancho. Há maior desgraça! Ai, burro da minha alma, quem te dissera a ti que eu havia de ser o mesmo que te sentenciasse? Por isso ao entrar me deitou uns olhos, como quem me dizia que me houvesse com ele com compaixão. Não tem remédio; hei de sentenciar-te; o que poderei fazer é não dar execução à sentença. Olá, ninguém ouça isto. (À parte).
Homem. Senhor, despache-me vossa mercê; quando não, farei um desatino.
Sancho. Para que saiba o mundo a minha inteireza e incorruptibilidade, ouçam todos, que ainda com ser o burro meu, lhe dou a sentença seguinte.
Vai ditando Sancho a sentença.
Visto este burro, acusação do autor, provas dadas por uma e outra parte, mostra-se: que indo o autor roçando-se pelo pé dele réu burro, que por nome não perca, alçando o pé esquerdo despediu um couce, que, pregando na barriga dele autor, salvo tal lugar, o estendeu como um cação; e, porque consta da fé do Meirinho, que presente está e não me deixará mentir, que o dito réu burro trazia escondido no pé uma ferradura de ferro; e, como semelhantes armas sejam proibidas e defesas, por serem armas curtas, mando que ele, dito réu burro, seja desferrado, e vá passear sem albarda pela feira das bestas, exposto à vergonha dos mais burros, seus camaradas, para que se lhe faça a face vermelha, por me constar que é burro de vergonha. Item, que não possa ser pai de burrinhos, nem que se deite a lançamento. Item, que seja lançado à margem na Cotovia, onde não comerá senão relva ou cascas de melão, e melancia, como burro de aguadeiro. E pagará as custas e todas as perdas e danos, em que o condeno, etc. Ilha dos Panças alagartados, etc.
Todos. Viva o nosso Governador Sancho Pança! Viva para exemplo dos ministros e honra das ilhas!
Sancho. Bem folgo que vejais a minha inteireza; pois com ser o burro meu e tendo-lhe tanto amor, não foi este bastante para deixar de fazer justiça. Agora quero escrever uma carta a minha mulher. Ó escrivão, escrevei lá. Ponde em cima a cruz dos quatro caminhos, e uma alâmpada acesa.
Escrivão. Senhor, para que é a alâmpada?
Sancho. Sois asno? Donde vistes vós cruz sem alâmpada?
Escrivão. Está posta.
Carta, que vai ditando ao escrivão.
Sancho. Minha Teresa, já sabereis, que vos diria o Diabo, que estou feito governador em corpo e alma; mas, com me ver levantado do chão um côvado, não é razão que o meu amor conjugal vos falte com o débito de minhas letras. (Três pontos e quatro vírgulas). Porque vós bem sabeis que, quando no tabuleiro do gosto escolho o trigo do vosso carinho, lanço fora a ervilhaca da ingratidão; pois, joeirando as finezas, fica crivado o peito da correspondência; porém, indo meu amor à atafona dos extremos, ali se desfazem em pó as carícias do coração; e, furtando-me o atafoneiro da distância as maquias da vossa vista, peneiram os meus olhos lágrimas; e com elas amassando a farinha da mágoa no alguidar da saudade, levam em crescimento o suspiro, até que, tendendo-se na tábua dos rigores, vai para o forno das penas, e ali se coze com o fogo do desejo; e dando ao moço a merendeira do pesar, guardo o pão azedo de vossa lembrança no armário de minhas memórias. [Ponto de interrogação.] Enfim, mulher, tenho determinado que andeis em coche vós e minha filha, a quem peço se lembre que tem um pai governador. Aí vos mando esses caramujos e esse saco de areia, que é o que há nesta ilha. Graças a Deus, que ainda nos dá mais do que merecemos. O burro fica bom e se recomenda com muitas lembranças e diz que hajais esta por vossa; que não vos escreve por ter uns cravos em uma mão, que lhe fez um ferrador em umas bulhas que tiveram. Vede se presto para alguma cousa, que vo-la hei de fazer. Ilha dos Lagartos. Vosso marido, se quiseres. Sancho Pança, Governador. Esta carta será logo entregue.
Meirinho. Sim, senhor. Ora basta já de despacho; não queremos que vossa mercê se esfalfe; nem tudo se há de levar ao cabo. Venha vossa mercê jantar, que o conselho desta ilha tem preparado um magnífico banquete para vossa mercê nas casas da Câmara.
Sancho. Meirinho, jantar de Câmera será de coisaque já foi jantada, e assim vede lá o que dizeis.
Meirinho. Se vossa mercê o não quer na Câmara; será aqui mesmo, e vamos, que depois havemos ir rondar a ilha.
Sancho. Vamos nós reconhecer os pratos, e dai-me de jantar, seja onde for, porque o ventre non patitur moras.
Meirinho. Vamos. (Vão-se).
CENA V
Mutação de sala. Estará uma mesa mal ordenada, com uma garrafa em cima; estarão um médico, e um cirurgião, dois rebecas e um rebecão; e saem Sancho, o Meirinho e o Escrivão.
Sancho. Quem te dissera a ti, pobre Sancho Pança, que da rústica choupana de tua aldeia havias de chegar a tanta honra! Sem dúvida que o aparato desta mesa é digno de jantar nela um absoluto príncipe! Se isto é no preparatório, que será na côdea! Ai, esfaimado Sancho Pança, desta vez tirarás o ventre da miséria. Quem me dera ter nesta ocasião sete bocas, dez gorgomilos, quatro ordens de dentes e oito bandulhos para devorar e engolir tanta comezaina!
Meirinho. Senhor Governador, sente-se vossa mercê.
Sancho. Ó meu rico Meirinho do meu coração, dizei-me: quem são estes dois bigorrilhas?
Meirinho. Este é o médico, e este é o cirurgião, que ambos costumam assistir nos banquetes que se dão aos governadores, por grandeza e estado.
Sancho. Eu lhe perdoara o estado, com tanto que a grandeza só fora no comer. E quem são estes de cabeleira loura, muito buliçosos?
Meirinho. Estes são os que tangem vários instrumentos, enquanto se come, para excitar o apetite.
Sancho. Eu escuso acepipes para comer, pois o tenho para seis bois.
Tocam os instrumentos, muito desafinados.
Meirinho. Que tal tangem?
Sancho. Essa tocata é de rigor; parece feita por solfa..
Médico. Senhor Governador, ora por vida sua, que nos faça a honra de comer: faça-nos este gosto, por quem é.
Sancho. Não é necessário tanto rogo. Este médico tem feição! (À parte).
Médico. Primeiramente, senhor Governador, há de vossa mercê comer com parcimônia.
Sancho. Parcimônia é coisa de comer?
Médico. Parcimônia é comer com temperança.
Sancho. Isso de temperos pertence ao cozinheiro.
Médico. Temperança, por outro nome, é o mesmo que comer pouco e com regra; pois, conforme a melhor opinião dos modernos, o muito comer estraga a natureza.
Sancho. Ainda esta é pior! Ora digo-vos que sois um asno. O comer muito é proveitoso para a barriga, porque se enche; pois, conforme a melhor filosofia, non datur vacuum in rerum natura; e assim hei de comer.
Cirurgião. Senhor Governador, com licença de vossa mercê, antes que coma, é preciso fazer uma diligência do meu ofício da cirurgia.
Sancho. Entendo que este banquete tem algum apostema, que o cirurgião quer também meter a tenta. Vamos lá; que é isso?
Cirurgião. Quero endireitar-lhe o pescoço. Tenha-o sempre direito; não o torça, quando comer; porque facilmente pode quebrar alguma veia.
Sancho. Não me deixareis comer, como eu quiser? Que tendes que eu coma torto, ou direito? Vós cuidais que esta é a primeira vez que eu como na minha vida?
Médico. Senhor, uma coisa é comer como escudeiro, e outra como governador; e, como tal, queremos que vossa mercê coma como manda a arte médica e cirúrgica; pois a conservação da sua vida nos importa em muito, como único refúgio em que se estriba a nossa esperança.
Sancho. Seja o que vós quiséreis, e deixai-me comer; venha a sopa.
Médico. Isso é sopa? Nada, fora! Não coma vossa mercê sopa, que é muito nutritiva, geradora, danosa, sanguinária, e lhe pode resultar um estupor.
Sancho. Com que a sopa faz estupor? Vós é que sois o estupor da sopa. Hei de comê-la, mas que me dêem duzentos estupores.
Médico. Requeiro a vossa mercê, da parte da saúde, que não coma sopa, que nesta ilha a sopa prova muito mal.
Sancho. Isso é porque vocês não sabem provar bem a sopa.
Médico. Ora, senhor Governador, deixe vossa mercê isso, pois não falta comer em que vossa mercê se possa fartar. Coma esse prato de assado.
Cirurgião. Não, com licença de vossa mercê, senhor doutor, também agora não é lícito que o senhor governador coma assado, que lhe pode ferir a garganta, pelo torrado do forno e pela acrimônia do molho.
Médico. Pois não coma assado, se a cirurgia assim o manda.
Sancho. Com que você, senhor doutor, é juiz da consciência da minha barriga? Está galante história dizer lá o bigodes do cirurgião que o assado faz mal à garganta!
Meirinho. Senhor Governador, o que os senhores dizem tudo é para seu bem; e eles que o dizem, bem o entendem.
Sancho. Meirinho, eu sempre ouvi dizer que quem te dá o osso não te deseja ver morto; e estes físicos não só me não dão a carne, mas também me não dão o osso; e se não, dizei-me: para que me convidaram estes senhores, se me não deixam comer?
Médico. Essa é boa! Nós lhe proibimos o que é nocivo; aí não faltam manjares para vossa mercê comer.
Sancho. Ora está bem. Vamos comendo estas perdizes.
Médico. Tá, tá! Perdizes por nenhum caso; são perniciosas à vida do homem.
Sancho. À que del-rei, senhores! Há quem tal diga da perdiz que se come com a mão no nariz, por ser tão excelente, que é necessário apertar-se o nariz, para que não entre por ele?
Médico. Senhor Governador, dê-me atenção. A perdiz, como diz Averróis, é muito indigesta: Omnis saturatio mala; perdix autem pessima.
Sancho. Ora, Senhores, deixem-me já por caridade comer aquele prato de vaca, para consolação desta pobre pança; pois sempre ouvi dizer a meu amo que vacare culpa magnum est solatium.
Médico. Olhe vossa mercê, senhor Governador; não duvidamos que a vaca é generoso alimento; porém, como vossa mercê ainda não comeu coisa alguma, não é lícito que coma vaca estando em jejum; porque a vaca é alimento mui forte; e, como o estômago está fraco, peleja o forte com o fraco, e é forçoso que fique o fraco vencido, e do vencimento pode resultar a morte mui facilmente.
Sancho. Visto isso, também estou inabilitado para comer vaca?
Médico. Por ora, sim.
Sancho. Que por ora, se eu por instantes me estou desmaiando com fraqueza? Deixem-me comer aquele prato que ali está, que morro com fome.
Médico. Senhor, está louco? Quer comer pratos? Não vê que é de estanho e que lhe pode fazer uma grande obstrução na barriga?
Cirurgião. Ui, senhor, estanho não é bom para o estômago; nem derretido, quanto mais cru!
Sancho. Ora isto é já pouca vergonha: hei de comer o que eu quiser; pois sou governador em chefe com mero misto império nesta ilha e seus arredores.
Médico. Senhor, tenha mão.
Sancho. Sim, tenho mão para vos dar muita bofetada a vós, médico de ourinas, e a vós, cirurgião de trampa.
Meirinho. Senhor, não coma, que lhe pode fazer mal, que o dizem os senhores.
Sancho. Se o comer faz mal, também o não comer o faz; e, se hei de morrer de não comer, quero morrer comendo. Morra Marta, morra farta.
Haverá grande bulha sobre o comer ou não comer.
Médico. Acudam todos, que o senhor governador se quer matar por suas mãos.
Rebecas. Senhor, pague-nos vossa mercê, que aqui estivemos para tanger rebecas.
Sancho. Isso era pagar os açoutes ao verdugo.
Todos. A que del-rei sobre o governador, que nos não quer pagar!
Cirurgião. À que del-rei sobre o governador, que se quer matar pelas suas mãos!
Sancho. À que del-rei, que me querem matar à fome!
Meirinho. Vamos rondar a ilha, que é já noite.
Sancho. Não quero rondar, leve o Diabo a ilha. Há aqui perto alguma taverna?
Escrivão. Ora vamos, que ao depois, sem que o médico nem o cirurgião saibam, lhe daremos bem que comer.
Sancho. Vede lá o que dizeis!
Escrivão. Tenho dito e fie-se em mim.
Sancho. Ora vamos rondar; mas esperai; e, se acharmos alguns marujos que nos quebrem os narizes, que conta havemos dar de nós?
Meirinho. Por isso mesmo; para os prender.
Sancho. Isso é o mesmo que quebrar um olho a mim para tirar dois a meu contrário! Não, senhor; deixe vossa mercê patuscar a quem patusca; já que o não podem fazer de dia, deixemo-los patuscar de noite, que é sua e ninguém lha pode tirar por força.
Meirinho. Vamos, senhor; se não, daremos com vossa mercê fora daqui.
Sancho. Vamos; mas olhe que lhe digo que eu vou como quem vai para a forca.
CENA VI
Mutação de casas. Estarão alguns rebuçados , e se canta o oitavado, e saem Sancho, o Meirinho e Escrivão, rondando.
Sancho. Agora me lembra o meu tempo, quando eu namorava a minha Teresa; isso eram canas! Dei-lhe uma vez um descante, que fazia bailar as tripecinhas. O demo da rapariga era esquiva, como não sei quê. Uma vez, pedi-lhe que me deixasse beijar-lhe a mão, e virou-me o rabo com tanta ga¬lantaria e gentileza, que lho beijei, cuidando que era a mão. Cantava-lhe o meu oitavado do Inferno, que era como estar; um homem com as vozes do meu canto a dar com corpo à sola.
Meirinho. Vamos prender estes maganos.
Sancho. Deixai-os, Meirinho.
Meirinho. Senhor, isto é um desaforo: andar de¬sinquietando as moças honradas, que estão em casa de seus pais.
Sancho. Dizeis bem. Olá, ó senhores esquinados , vocês bem podem namorar sem desinquietar as raparigas.
Escrivão. Vocês não têm respeito à Justiça? Vão-se logo embora.
Sancho. Ó filhos, não deis escândalo à vizi¬nhança, nem deis motivo a distúrbios com vossos divertimentos; quando não, farei justiça.
Homem. Vamos dar outro descante pela parte do quintal.
Meirinho. Ali está um vulto naquela esquina. Reconheça vossa mercê quem é.
Sancho. Como o hei de reconhecer, se ele está embuçado?
Meirinho. Por isso mesmo.
Sancho. Ah, senhor, desembuce-se lá; olhe que o quero reconhecer. Ai, que já o reconheci!
Meirinho. Quem é?
Sancho. É um homem que está embuçado.
Meirinho. Pergunte-lhe quem é, da parte do senhor governador.
Sancho. Quem é, da parte do senhor governa¬dor?
Homem. Que lhe importa?
Sancho. Não disse eu que se havia de agastar? Vocês não querem tomar o meu conselho…
Meirinho. Torne-lhe a perguntar.
Sancho. Quem é, da parte del-rei?
Homem. É a perra, que o pariu.
Sancho. Ai, que é minha mãe! Mas ela já morreu; será a sua alma, que me vem ver. Diga por vida sua quem é.
Homem. Sou sua avó torta.
Sancho. Mente, magano, que minha avó não era torta, nem na minha geração houveram tortos. Torto será você.
Meirinho. Venha preso, da parte del-rei.
Homem. Digo que não quero ir preso.
Sancho. Você não quer ir preso? Olhe bem o que diz.
Homem. Não quero; tenho dito.
Sancho. Pois vá-se embora.
Meirinho. Que quer dizer — não quero ir preso? Venha logo.
Sancho. Meirinho, vós sois terrível; se o homem não quer ser preso, para que o havemos levar con¬tra sua vontade? Não vedes que pode dar uma força de nós?
Meirinho. Ora isso é já pouca vergonha! Há de vir desta sorte.
Homem. Venha para cá, que eu o enfiarei.
Puxam pelas espadas e foge Sancho.
Sancho. Pés para que te quero! Lá vai o Mei¬rinho cos diabos! De boa escapei eu! (Vai-se).
Meirinho. Ah, senhor Governador!
Sancho. Não deixarão a este pobre governador lograr o seu governo descansado na cama, com as pernas para o ar?
Meirinho. Senhor Governador?
Sancho. Mudos sejais vós todos os dias da vossa vida! Arre lá com o salvaginha! Bate, que parece que pisa esparto.
Escrivão. Vossa mercê não ouve, senhor Gover¬nador?
Sancho. Isso é tolice; pois, se eu ouvira, não houvera responder.
Meirinho. Ora ouça, que estou batendo.
Sancho. Com a motinada do bater, não ouço nada.
Meirinho. Pois já não bato; ouça vossa mercê.
Sancho. Uma vez que não bateis, entendo que não quereis entrar.
Escrivão. Vossa mercê parece que não ouve?
Sancho. Não poderei ser surdo, se quiser? Olhem que está boa!
Meirinho. Senhor, que está a ilha cercada de inimigos; acuda vossa mercê.
Sancho. Adeus, minhas encomendas! Lá vai o pobre Sancho Pança desta bolada.
Escrivão. Senhor, venha defender a praça; saia-nos a governar como bom capitão.
Sancho. Mandai cantar a ladainha de todos os santos, e vereis como se vão.
Meirinho. Ora isto é já pouca vergonha; lá vai a porta dentro. (Sai Sancho).
Sancho. Esperem, que eu lá vou para fora. Vo¬cês estão aqui há muito tempo?
Meirinho. Há mais de duas horas.
Sancho. Porque não falavam? Eu adivinho? Pois que temos?
Escrivão. Estamos perdidos.
Sancho. Alguém nos achará.
Meirinho. Inimigos na ilha; acudamos a defen¬dê-la.
Sancho. Pois façamo-nos seus amigos, e dizei-lhe que entrem.
Escrivão. Pelejemos, senhor.
Sancho. Isso é mais. Eu sou cá espadachim? Não basta que eles briguem?
Meirinho. Senhor, que já eles aí vêm; vamos sair-lhe ao encontro.
Sancho. Tomara-me não encontrar com seme¬lhante gente! Vão vocês brigar, se quiserem, que eu fico governando a ilha.
Escrivão. Senhor, que vem passando tudo a cutelo; defendamo-nos.
Sancho. Isso é outra cousa. Olá, todos os nossos soldados se ponham em ala com as mãos atadas para trás, para que logo sejam degolados; e, quando os inimigos vierem, ninguém lhes faça mal: deixem-lhe tomar a ilha, que mais vale tomada, que perdida.
Meirinho. Vamos, senhor.
Saem alguns homens.
Todos. Morra Sancho Pança! Vitória!
Sancho. Morra muito embora, com contanto que me não matem.
Todos. Este é o governador. Venha preso.
Cai Sancho no chão.
Sancho. Eu quero morrer, antes que me matem.
Todos. Ele tá morto; enterremo-lo.
Sancho. Pior está esta. Quem lhe disse a eles que eu queria que me enterrassem?
Todos. Levemo-lo a enterrar.
Sancho. Não; eu não sou morto de ceremônias; eu irei mesmo por meu pé.
Todos. Peguem nele.
CENA VII
Mutação de jardim, aonde estarão o Fidalgo, a Fidalga e D. Quixote.
D. Quixote. Senhora excelentíssima, fidalguíssimo senhor, não sei aonde pretendem chegar vossas grandezas com tantas liberalidades, quantas são as com que tratam a um cavaleiro andante! Algum dia saberei pagar tantos benefícios; pois também os senhores não se livram de estarem encantados.
Fidalga. Senhor D. Quixote, ainda fazemos pouco, segundo o que merece um cavaleiro an¬dante, como vossa mercê.
Fidalgo. Se a minha casa não estivera tão empenhada, vossa mercê vira o nosso primor.
Sai Sancho.
Sancho.O diabo leve a ilha, e mais quem me mandou para ela!
Fidalgo. Que é isso, Sancho Pança? Que conta me dais da minha ilha?
Sancho. Aonde está a galantaria de me mandar vossa reverência a ser governador de uma ilha atreita a inimigos? Eles lá ficam a paz e salvo, e eu vim fugindo a unha de burro.
Fidalgo. Pois não a soubeste defender.
Sancho. Defendi-a até a última pinga de sangue e até me fiz morto, a ver se eles fugiam; mas os malditos não têm medo de defuntos.
D. Quixote. Vai-te, cobarde galinhola! Isso é o que aprendeste do meu valor, há tantos anos na escola da minha milícia? Não te hei de ver mais a cara. Que se há de dizer de mim, se tu dás má fama do meu valor?
Fidalga. Senhor, os acidentes da fortuna não são deslustres do valor; isto podia acontecer ao mais valente.
Sancho. Isso estava eu para dizer agora, e tirou-me da boca o que eu já tinha entre os dentes.
Sai um escudeiro.
Escudeiro. Senhor D. Quixote de la Mancha, a Senhora Condessa Trifalde pede licença para falar a vossa mercê.
D. Quixote. Dizei-lhe que entre, com licença dos senhores.
Condessa. Senhor, aos pés de vossa mercê busca remédio uma desgraçada condessa, a qual vive encantada há vinte anos, com tal extravagância dos encantadores, que tendo eu o melhor carão, me fizeram crescer na cara as maiores barbas que nunca se viram em homem algum! E assim, só o vosso valor me pode desencantar.
Sancho. Esta é mulher de bigode!
D. Quixote. Senhora, menos rogo que esse bas¬tava para vos desencantar.
Condessa. Pois eu chamo um cavalo, no qual su¬bireis à região etérea a desencantar-me, e vosso criado Sancho Pança há de ir nas ancas.
Sancho. Senhora condessa Trifalda, eu sempre ouvi dizer que o dar vinha nas ancas do prometer; eu já estou desenganado do que dão de si estes desencantos; com que, sem que me paguem, não vou, mas que me frijam.
Condessa. Dou-te uma jóia, que vale mil moedas, que também está encantada.
Sancho. Pois eu vou desencantar a jóia, e meu amo a vossa barbaridade.
Canta a condessa Trifalde a seguinte
ÁRIA
As nuvens com ventos
soberbos, violentos,
me tragam voando
um belo cavalo,
e nele montado
Dom Quixote vá.
Também Sancho Pança
chegue a montá-lo,
por que desta sorte
se veja a mudança
do rosto, que é morte,
se barbas se dá.
Nas últimas cláusulas da ária desce o cavalo, e montam D. Quixote e Sancho Pança.
Sancho. Não lhe aperte muito o freio, que é doce da boca.
D. Quixote. Já passamos a região aérea.
Sancho. Aéreo está vossa mercê. Este cavalo anda, que parece que voa. Para carga! Este cavalo, como vai pelo ar, tem muita ventosidade.
D. Quixote. Esta é a região do fogo: já estamos perto.
Cai o cavalo com D. Quixote e Sancho.
Sancho. Esta é a região da terra. Ai, que quebrei as costelas! Ai, senhora condessa, ou senhora alcofa, aonde estão as moedas?
Condessa. Senhor D. Quixote, já estou desencan¬tada; vivais muitos anos. Sancho Pança, as moedas hão de vir para o tempo delas. Adeus!
Sancho. Há maior insolência! Tu és asno, San¬cho? Pois leva, leva! Senhor, eu me resolvo a ir para a minha aldeia sangrar-me e purgar-me; pois tenho levado tantas quedas de desgraça, sem que pudesse ter queda com a fortuna.
D. Quixote. Senhores, vossas grandezas me hão de dar licença, que não é razão esteja aqui tanto tempo, sem ir desencantar outras pessoas, visto ter já desencantado esta condessa.
Fidalga. Não posso estorvar a vossa mercê este louvável exercício das suas cavalarias.
Fidalgo. Viva mil anos o senhor D. Quixote, por tantos desencantos.
D. Quixote. Senhores, isto em mim sempre foi obrigação. Sancho, vai selar os cavalos.
Sancho. Vamo-nos já desta casa encantada.
CENA VIII
Mutação de bosque. Saem Sansão Carrasco, D. Quixote e Sancho, os dois primeiros a cavalo.
Carrasco. Agora veremos se deste segundo desafio tenho a fortuna da minha parte, e darei quanto possuo, se chegar a vencer agora a este D. Quixote, para ver se lhe posso tirar da cabeça a este louco a loucura que tem empreendido. Eu te prometo que tu fiques desenganado e por estes par de anos não montarás a cavalo. Oh, se quisera a ventura que agora o encontrasse! Mas, se me não engana a vista, lá vejo vir um cavaleiro. Ele é sem dúvida; apressar-me quero. (Sai D. Quixote). Se sois cava¬leiro andante, brigai comigo.
D. Quixote. Como se o sou? Não só convosco brigarei, mas com mil de vós.
Sancho. Mau! Isto é caso pensado, e rixa velha.
Carrasco. Investi, cavaleiro.
D. Quixote. Invisto. (Cai D. Quixote).
Sancho. Oh, desgraçado! Aqui vieram ter fim as tuas cavalarias andantes! Ah, senhor, não o mate por vida sua: deixe-o para tronco dos cavaleiros andantes.
D. Quixote. Estou vencido. Nem sempre a for¬tuna me havia de ser favorável.
Carrasco. Pois estais vencido, mando-vos que não tomeis armas por espaço de dez anos e vos recolhais a vossa casa.
Sancho. Oh! Nunca ta mão doa! Bem hajas!
D. Quixote. Como bom cavaleiro, devo obedecer. Dizei-me: quem sois?
Carrasco. Eu sou Sansão Carrasco, a quem ven¬cestes já uma vez; agora quiseram os astros que eu vos vencesse, para que vos recolhais em paz para a vossa casa, que assim mo pediu vossa sobrinha e vossa ama.
Sancho. Ora, Senhores, acabou-se a valentia de D. Quixote, graças a Deus! Tirei bom fruto dele! Bem me disse a minha filha ao despedir-me! Com que agora, dando fim a esta verdadeira história, irei cantando:
Tão alegres que viemos,
e tão tristes que tornamos.
Canta o coro como no principio.
F I M

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