Antropologia Teatral nasce, segundo Eugênio Barba, do desejo de entender os processos pelos quais os atores do Odin Teatret transitavam entre diferentes modos de comportamento na cena e na vida (BARBA, 1993: 20-21). Afirma o autor que foi a observação de que estes se serviam de distintas técnicas corporais, em particular, o fator que desencadeou as questões que constituem o objeto da Antropologia Teatral. A Antropologia Teatral surge, então, com a vontade de investigar os procedimentos dos elementos do Odin Teatret, para se estender a um campo de indagação que visa compreender a atividade dos atores em geral, independentemente do estilo formalizado que esta possa assumir. Barba dá a seguinte definição:
“A Antropologia Teatral é o estudo do comportamento cênico pré-expressivo que se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis e das tradições pessoais e coletivas. Por isso, lendo a palavra «ator», dever-se-á entender «ator e bailarino», seja mulher ou homem; e ao ler «teatro» dever-se-á entender «teatro e dança».” (BARBA, 1993: 21)
Ressalta desta passagem, em primeiro lugar, a necessidade que Eugênio Barba manifesta de alargar o conteúdo semântico dos termos «ator» e «teatro». Com efeito, é este movimento que permite ao autor colocar lado a lado manifestações tão distintas como o Noh japonês, a dança Odissi indiana e o Teatro de Arte de Moscou, bem como desenvolver uma análise do comportamento cênico centrada na conduta corporal dos artistas. Em segundo lugar, este movimento faz-se, ora implícita ora explicitamente, a par com a convicção de que existe um domínio comum às distintas formas teatrais, aquilo que o autor denomina por pré-expressivoii. Antes de discutir um pouco esta noção, apontemos os três elementos fundamentais do que Barba considera o nível pré-expressivo:
“Tendo seguido a trilha do ator-bailarino, alcançamos o ponto onde somos capazes de perceber seu núcleo: 1. na ampliação e ativação das forças que estão agindo no equilíbrio; 2. nas oposições que determinam as dinâmicas dos movimentos; 3. numa operação de redução e substituição, que revela o que é essencial nas ações e afasta o corpo para longe das técnicas cotidianas, criando uma tensão, uma diferença de potencial, através da qual passa a energia.” (BARBA, 1995: 20)
O comportamento extra quotidiano é, portanto, estabelecido com base em três princípios – equilíbrio instável, tensão de forças contrárias e condensação do gesto. Para Eugênio Barba, não se trata tanto de universais ou de leis mais de princípios comuns observáveis em diferentes formas codificadas de atuação, regras para uso do atorbailarino.
A primeira questão que importa colocar é a de saber se as ditas técnicas que operam ao nível do comportamento pré-expressivo são separáveis das respectivas formas de representação, i.e., dos estilos de atuação. Num texto anterior ao supracitado, o autor refere-se ao pré-expressivo de forma que esta questão ganha evidência:
A primeira questão que importa colocar é a de saber se as ditas técnicas que operam ao nível do comportamento pré-expressivo são separáveis das respectivas formas de representação, i.e., dos estilos de atuação. Num texto anterior ao supracitado, o autor refere-se ao pré-expressivo de forma que esta questão ganha evidência:
“A Antropologia Teatral indica um novo campo de pesquisa: o estudo do comportamento pré-expressivo do ser humano em situação de representação organizada.” (BARBA, 1993: 24)
Se, na primeira definição fornecida, o comportamento pré-expressivo “se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis e das tradições pessoais e coletivas”, nesta outra, o comportamento pré-expressivo observa-se no “ser humano em situação de representação organizada.” Então, são estes princípios-que-retornam um denominador comum da prática do ator e independentes das formalizações artísticas? Ou, pelo contrário, a sua identificação decorre do universo amostrado e de uma determinada percepção do que é o teatro?
Esta dificuldade decorre, pelo menos em parte, da falta de clareza na definição tanto dos fenômenos teatrais analisados quanto do método prosseguido nesse trabalho. Os principais exemplos referidos nos diversos textos, sem qualquer intenção sistemática, pertencem a formas teatrais orientais, nomeadamente o Noh, o Kabuki, o Kathakali, a Odissi e a Ópera de Pequim. Eugênio Barba fala de uma distinção consagrada na terminologia da dança tradicional indiana [Lokadharmi (comportamento quotidiano) e Natyadharmi (comportamento da dança)] para exemplificar e fundamentar a sua crença na existência do comportamento pré-expressivo (BARBA, 1995: 9). Parece-me importante salientar que estes são exemplos de formas de teatro-dança orientais e codificadas e que, como observa o próprio Barba, “No Ocidente, a distância que separa as técnicas corporais cotidianas das extracotidianas não é, com frequência, evidente ou conscientemente considerada.” Vale a pena observar que são a mímica corpórea de Etienne Decroux e o ballet clássico as duas formas ocidentais, também elas codificadas, às quais o autor vai buscar elementos para confirmar a sua tese. Serão estas realmente regras identificáveis e aplicáveis no trabalho do ator que se move num contexto teatral a priori não codificado? A constatação de que nas definições aqui apresentadas de ator-bailarino e de préexpressivo, bem como nos textos analisados de uma forma geral, há muito poucas menções ao aspecto vocal do trabalho do ator, nuclear nas diversas tradições, mas com ênfases notoriamente distintas na relação entre verbalização e canto, contribui para alimentar esta dúvida. Outro ponto crítico na escolha dos exemplos prende-se com a possível circularidade do argumento, como sucede quando o autor salienta as semelhanças entre a prática de Gerzy Grotowski e as do teatro oriental, quando são conhecidas as influências deste último no desenvolvimento dos procedimentos e teorias do primeiro, em particular nos períodos do «Teatro das Fontes» e do «Drama Objetivo» (LENDRA, 2002: 148).
Outro aspecto merecedor de um olhar crítico é o da metodologia e processo de análise que permite a Eugênio Barba fazer as suas afirmações. O autor serve-se da expressão «análise transcultural» (cf. nota 1) mas assume que não examina o contexto histórico-social em que as diversas formas teatrais ocorrem (BARBA, 1993: 70). O que entende ele por análise transcultural e quais são os métodos de investigação utilizados? O autor responde:
“[A Antropologia Teatral] Não executa mensurações, não usa métodos estatísticos, não tenta deduzir as conseqüências para o comportamento do ator com base no conhecimento da medicina, biologia, psicologia, sociologia ou da ciência das comunicações.
Baseia-se na pesquisa empírica da qual extrai princípios gerais. Desenvolvese numa dimensão operativa submetida à eficácia da ação cênica. Define um campo de perguntas e forja os instrumentos teóricos para explorá-lo. Individualiza leis pragmáticas.” (BARBA, 1993: 63) Eugenio Barba recorre ao termo empírico para classificar o seu método de trabalho mas não explicita os procedimentos experimentais que utiliza. Antes salienta o aspecto operativo da sua investigação e a submissão desta a uma noção de eficácia. Parece, portanto, que as leis pragmáticas que identifica são mais um credo estético que um conjunto de elementos reconhecidamente partilhados pelas formas teatrais Ocidentais e Orientais.
Alexandre Pieroni Caladoi (ECA/USP)
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BARBA, Eugenio, [1993] 1994, A Canoa de Papel, trad. Luis Otávio Burnier, São Paulo -
Campinas, Editora HUCITEC.
BARBA, Eugenio, [1991] 1991, Além das Ilhas Flutuantes, trad. Luis Otávio Burnier, São
Paulo – Campinas, Editora HUCITEC.
BARBA, Eugenio, 1981, «La Course des Contraires» in Les voies da la création Théâtrale –
La formation du comédien, IX, 1981, Paris, Éditions du Centre National
de la Rechercher Scientifique, pp. 14-60.
ANTZE, Rosemary Jeanes, 1995, «Aprendizagem – Exemplos Orientais» in BARBA,
Eugenio et SAVARESE, Nicola, 1995, A Arte Secreta do Ator,
resp. trad. Luis Otávio Burnier, São Paulo – Campinas, Editora
HUCITEC, pp. 30-33.
BONFITTO, Matteo, 2002, O ator compositor, São Paulo, Perspectiva.
GORDON, Mel, 2002, «Meyerhold’s Biomechanics» in ZARRILLI, Phillip (ed.), 2002, Acting
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KIRBY, Michael, 2002, “On Acting and Not-Acting” in Phillip ZARRILLI (ed.), 2002, Acting
(Re)Considered, Routledge, New York, 2nd.
LENDRA, I Wayan, 2002, «Bali and Grotowski – Some parallels in the training process» in
ZARRILLI, Phillip (ed.), 2002, Acting (Re)Considered, New York,
Routledge, 2nd, pp. 148-162.
http://andreteatro.blogspot.com/2011/09/primeira-questao-antropologia-teatral-e.html
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