segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Frei Luis de Sousa



Almeida Garret: Frei Luís de Sousa

Breve Análise

1. Acção dramática

Frei Luís de Sousa contém o drama que se abate sobre a família de Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena de Vilhena. As apreensões e pressentimentos de Madalena de que a paz e a felicidade familiar possam estar em perigo tornam-se gradualmente numa realidade. O incêndio no final do Acto I permite uma mutação dos acontecimentos e precipita a tensão dramática. E no palácio que fora de D. João de Portugal, a acção atinge o seu clímax, quer pelas recordações de imagens e de vivências, quer pela possibilidade que dá ao Romeiro de reconhecer a sua antiga casa e de se identificar a Frei Jorge.
O Acto I inicia-se com Madalena a repetir os versos d'Os Lusíadas:
  • "Naquele engano d'alma ledo e cego,
    que a fortuna não deixa durar muito…"
As reflexões que se seguem transmitem, de forma explícita um presságio da desgraça que irá acontecer. Obedecendo à lógica do teatro clássico desenvolve a intriga de forma a que tudo culmine num desfecho dramático, cheio de intensidade: morte física de Maria e a morte para o mundo de Manuel e Madalena.

2. Do drama clássico ao drama romântico

Se se pretender fazer uma aproximação entre esta obra e a tragédia clássica, poder-se-á dizer que é possível encontrar quase todos os elementos da tragédia, embora nem sempre obedeça à sua estruturação objectiva.
A hybris é o desafio, o crime do excesso e do ultraje. D. Madalena não comete um crime propriamente na acção, mas sabemos que ele existiu pela confissão a Frei Jorge de que ainda em vida de D. João de Portugal amou Manuel de Sousa, apesar de guardar fidelidade ao marido. O crime estava no seu coração, na sua mente, embora não fosse explícito como entre os clássicos.
Manuel de Sousa Coutinho também comete a sua hybris ao incendiar o palácio para não receber os governadores. A hybris manifesta-se em muitas outras atitudes das personagens.
O conflito que nasce da hybris desenvolve-se através da peripécia (súbita alteração dos acontecimentos que modifica a acção e conduz ao desfecho), do reconhecimento (agnórise) imprevisto que provoca a catástrofe. O desencadear da acção dá-nos conta do sofrimento (páthos) que se intensifica (climax) e conduz ao desenlace. O sofrimento age sobre os espectadores, através dos sentimentos de terror e de piedade, para purificar as paixões (catarse). A reflexão catártica é também dada pelas palavras do Prior, quando na última fala afirma: "Meus irmãos, Deus aflige neste mundo àqueles que ama. A coroa da glória não se dá senão no céu".
Tal como na tragédia clássica, também o fatalismo é uma presença constante. O destino acompanha todos os momentos da vida das personagens, apresentando-se como um força que as arrasta de forma cega para a desgraça. É ele que não deixa que a felicidade daquela família possa durar muito.
Garrett, recorrendo a muitos elementos da tragédia clássica, constrói um drama romântico, definido pela valorização dos sentimentos humanos das personagens; pela tentativa de racionalmente negar a crença no destino, mas psicologicamente deixar-se afectar por pressentimentos e acreditar no sebastianismo; pelo uso da prosa em substituição do verso e pela utilização de uma linguagem mais próxima da realidade vivida pelas personagens; sem preocupações excessivas com algumas regras, como a presença do coro ou a obediência perfeita à lei das três unidades (acção, tempo e espaço).

3. Tempo

A acção dramática de Frei Luis de Sousa acontece em 1599, durante o domínio filipino, 21 anos após a batalha de Alcácer-Quibir. Esta aconteceu a 4 de Agosto de 1578.
"A que se apega esta vossa credulidade de sete… e hoje mais catorze… vinte e un anos?", pergunta D. Madalena a Telmo (Acto I, cena 11).
"Vivemos seguros, em paz e felizes… há catorze anos" (1, cena 11).
"Faz hoje anos que… que casei a primeira vez, faz anos que se perdeu el-rei D. Sebastião, e faz anos também que… vi pela primeira vez a Manuel de Sousa", afirma D. Madalena (Il. cena X).
"Morei lá vinte anos cumpridos" (…) "faz hoje um ano… quando me libertaram", diz o Romeiro (Il. cena XIV).
A acção reporta-se ao final do século XVI, embora a descrição do cenário do Acto I se refira à "elegância" portuguesa dos princípios do século XVII.
O texto é, porém, escrito no século XIX, acontecendo a primeira representação em 1843.

4. Personagens

D. Madalena de Vilhena é a primeira personagem que aparece na obra, mas pode-se afirmar que toda a familia tem um relevo significativo. São as relações entre esposos, pais e filha, o criado e os seus amos ou mesmo o apoio de Frei Jorge que estão em causa. Um drama abate-se sobre esta família e enquanto Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena se refugiam na vida religiosa, Maria morre como vítima inocente.
D. Madalena tinha 17 anos quando D. João de Portugal desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir. Durante 7 anos procurou-o. Há catorze anos que vive com Manuel de Sousa Coutinho. Tem agora 38 anos (17 + 21). Mulher bela, de carácter nobre, vive uma felicidade efémera, pressentindo a desventura e a tragédia do seu amor. Racionalmente, não acredita no mito sebastianista que Ihe pode trazer D. João de Portugal, mas teme a possibilidade da sua vinda. E com medo que a encontramos a reflectir sobre os versos de Camões e a sentir, como que em pesadelo, a ideia de que a sobrevivência de D. João destrua a felicidade da sua família. No imaginário de D. Madalena, a apreensão torna-se pressentimento, dor e angústia. É neste terror que se vê na necessidade de voltar para a habitação onde com ele viveu.
Manuel de Sousa Coutinho (mais tarde Frei Luis de Sousa) é um nobre e honrado fidalgo, que queima o seu próprio palácio, para não receber os governadores. Embora apresente a razão a dominar os sentimentos, por vezes, estes sobrepõem-se quando se preocupa com a doença da filha. É um bom pai e um bom marido.
Maria de Noronha tem 13 anos, é uma menina bela, mas frágil, com tuberculose, e acredita com fervor que D. Sebastião regressará. Tem uma grande curiosidade e espírito idealista. Ao pressentir a hipótese de ser filha ilegítima sofre moralmente. Será ela a vítima sacrificada no drama.
Telmo Pais, o velho criado, confidente privilegiado, define-se pela lealdade e fidelidade. Não quer magoar nem pretende a desgraça da família de D. Madalena e Manuel. Mas como verdade recorrente no mito sebastianista, acredita que D. João de Portugal há-de regressar. No fim, acaba por trair um pouco a lealdade de escudeiro pelo amor que o une à filha daquele casal, D. Maria de Noronha. Representa um pouco o papel de coro da tragédia grega, com os seus diálogos, os seus agoiros ou os seus apartes.
O Romeiro apresenta-se como um peregrino, mas é o próprio D. João de Portugal. Os vinte anos de cativeiro transformaram-no e já nem a mulher o reconhece. D. João, de espectro invisível na imaginação das personagens, vai lentamente adquirindo contornos até se tornar na figura do Romeiro que se identifica como "Ninguém". O seu fantasma paira sobre a felicidade daquele lar como uma ameaça trágica. E o sonho torna-se realidade.
Frei Jorge Coutinho, irmão de Manuel de Sousa, amigo da família e confidente nas horas de angústia, ouve a confissão angustiada de D. Madalena. Vai ter um papel importante na identificação do Romeiro, que na sua presença indicará o quadro de D. João de Portugal.

5. Cenário

O Acto I passa-se numa "câmara antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegancia dos principios do século XVII", no palácio de Manuel de Sousa Coutinho, em Almada. Neste espaço elegante parece brilhar uma felicidade, que será, apenas, aparente.
O Acto II acontece "no palácio que fora de D João de Portugal, em Almada, salão antigo, de gosto melancólico e pesado, com grandes retratos de familia…". As evocações do passado e a melancolia prenunciam a desgraça fatal.
O Acto lll passa-se na capela, que se situa na "parte baixa do palácio de D. João de Portugal". "É um casarão vasto sem ornato algum". O espaço denuncia o fim das preocupações materiais. Os bens do mundo são abandonados.

6. A Atmosfera

Há ao longo da intriga dramática uma atmosfera psicológica do sebastianismo com a crença no regresso do monarca desaparecido e a crença no regresso da liberdade. Telmo Pais é quem melhor alimenta estas crenças, mas Maria mostra-se a sua melhor seguidora.
Percebe-se também uma atmosfera de superstição, nomeadamente desenvolvida em redor de D Madalena.

7. Simbologia

Vários elementos estão carregados de simbologia, muitas vezes a pressagiar o desenrolar da acção e a desgraça das personagens. Apenas como referência, podemos encontrar algumas situações e dados simbólicos:
  • A leitura dos versos de Camões referem-se ao trágico fim dos amores de D. Inês de Castro que, como D. Madalena, também vivia uma felicidade aparente quando a desgraça se abateu.
  • O tempo dos principais momentos da acção sugerem o dia aziago: sexta-feira, fim da tarde e noite (Acto I), sexta-feira, tarde (Acto II), sexta-feira, alta noite (Acto lll); e à sexta-feira D. Madalena casou-se pela primeira vez; à sexta-feira viu Manuel pela primeira vez; à sexta-feira dá-se o regresso de D. João de Portugal; à sexta-feira morreu D. Sebastião, vinte e um anos antes.
  • A numerologia (1) parece ter sido escolhida intencionalmente. Madalena casou 7 anos depois de D. João haver desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir; há 14 anos que vive com Manuel de Sousa Coutinho; a desgraça, com o aparecimento do Romeiro, sucede 21 anos depois da batalha (21=3x7). 0 número 7 é um número primo que se liga ao ciclo lunar (cada fase da Lua dura cerca de sete dias) e ao ciclo vital (as células humanas renovam-se de sete em sete anos), representa o descanso no fim da criação e pode-se encontrar em muitas representações da vida, do universo, do homem ou da religião; o número 7 indica o fim de um ciclo periódico. O número 3 é o número da criação e representa o círculo perfeito. Exprime o percurso da vida: nascimento, crescimento e morte. O número 21 corresponde a 3x7, ou seja, ao nascimento de uma nova realidade (7 anos foi o ciclo da busca de notícias sobre D. João de Portugal e o descanso após tanta procura); 14 anos foi o tempo de vida com Manuel de Sousa (2x7, o crescimento de uma dupla felicidade: como esposa de Manuel e como mãe de Maria; 14 é gerado por 1+4=5, apresentando-se como símbolo da relação sexual, do acto de amor); 21 anos completa a tríade de 7 apresentando-se como a morte, como o encerrar do círculo dos 3 ciclos periódicos O número 7 aparece, por vezes, a significar destino, fatalidade (imagem do completar obrigatório do ciclo da vida), enquanto o 3 indica perfeição; o 21 significa, então, a fatalidade perfeita.
  • Maria vive apenas 13 anos. Na crença popular o 13 indica azar. Embora como número ímpar deva apresentar uma conotação positiva, em numerologia é gerado pelo 1+3=4, um número par, de influências negativas, que representa limites naturais. Maria vê limitados os seus momentos de vida.

8. Acção Trágica

Elementos trágicosHybris
(o desafio)
Agón
(o conflito)
Pathos
(o sofrimento)
Katastrophé
(a catástrofe)
D. Madalena de Vilhenacontra as leis e os direitos da família:

adultério no coração

consumação pelo casamento com Manuel

profanação de um sacramento

bigamia
interior, de consciência

contínuo

crescente

gerador de conflitos:
com D. Manuel
com D. João
com Maria
com Telmo
por causa do adultério

pela incerteza da sorte do primeiro marido

violento pela volta ao palácio do primeiro marido

cruel após conhecimento da existência do primeiro marido:
pela perda do marido
pela perda de Maria
causada pelo regresso de D. João - morte psicológica:

separação do marido

profissão religiosa

salvação pela purificação:

irmã Sóror Madalena das Chagas
Manuel S. Coutinhorevolta contra as autoridades de Lisboa

desafia o destino ao incendiar o palácio

recusa o perdão

inconscientemente participante da hybris de sua esposa
não tem conflito de consciência

não entra em conflito com as outras personagens

a sua hybris desencadeia e agudiza os conflitos das outras personagens
sofre a angústia pela situação da sua mulher

sofre a angústia pela situação presente e futura da filha
morte psicológica:

separação da esposa
separação do mundo
profissão religiosa

glória futura de escritor:

Frei Luís de Sousa: glória de santo
D. João de Portugalabandona a família

não dá notícias da sua existência

aparece quando todos o julgavam morto
não tem conflito

alimenta os conflitos dos outros

agudiza todos os conflitos com o seu regresso
sofre o esquecimento a que foi votado

sofre pelo casamento da sua mulher

sofre por não poder travar a marcha do destino
morte psicológica:

separação da mulher

a situação irremediável do anonimato
D. Maria de Noronharevolta contra a profissão religiosa dos pais

revolta contra D. João de Portugal

convida os pais a mentir
não tem conflito

entra em conflito com:
sua mãe
seu pai
Telmo
D. João de Portugal
sofre fisicamente:
tuberculose

sofre psicologicamente:
não obtém resposta a muitos agoiros
vergonha da ilegitimidade
morre fisicamente

vai para o céu
Telmo Paisafeiçoa-se a Maria

deseja que D. João de Portugal tivesse morrido
conflito de consciência

conflito com outras personagens:
com D. Madalena
com D. Manuel
com Maria
com D. João de Portugal
sofre pela dúvida constante que o assalta acerca da morte de D. João de Portugal

sofre hesitando entre a fidelidade a D. João e a D. Manuel

sofre a situação de Maria
não poderá resistir a tantos desgostos

9. Estrutura dramática

Estrutura InternaEstrutura Externa
ExposiçãoActo I - cenas I, II, III e IV
ConflitoActo I - cenas V-XII

Acto II

Acto III - cenas I-IX
DesenlaceActo III - cenas X-XII
Acto Icenas I-IV

cenas V-VIII

cenas IX-XII
Informações sobre o passado das personagens Preparação da acção - decisão dos governadores e decisão de incendiar o palácio

Acção: incêndio do palácio
Acto IIcenas I-III

cenas IV-VIII

cenas IX-XV
Informações sobre o que se passou depois do incêndio

Preparação da acção: ida de Manuel de Sousa Coutinho a Lisboa

Acção: chegada do Romeiro
Acto IIIcena I

cenas II-IX

cenas X-XII
Informações sobre a solução adoptada

Preparação do desenlace

Desenlace

Personalidade de Telmo
«Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.
O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. [...]
Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade, mesmo sem acontecimentos. Quando estes começam a desencadear-se, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso, o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.
Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor, mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.
O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:
- Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.»

Esta é uma verdadeira tragédia
«Esta é uma verdadeira tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as possa haver sobre factos e pessoas comparativamente recentes. [...]
Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado contudo que me atreva a dar a uma composição em prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas as composições poéticas.
O que escrevi em prosa, pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingénuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. mas sempre havia de aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei porque é verdade - repugnava-me também pôr na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de imitar o grande modelo; mas antes isso, do que fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua.
Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico.
[...]
Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo quanto a severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!»
Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa (lida em 6 de Maio de 1843 - nota de Garrett)


Definição de Tragédia
«É, pois, a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do [drama], [imitação que se efectua] não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.
[...]
Como esta imitação é executada por actores, em primeiro lugar o espectáculo cénico há-de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopeia e a elocução, pois estes sãos os meios pelos quais os actores efectuam a imitação. [...]
E como a tragédia é a imitação de uma acção e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de carácter e pensamento que nós qualificamos as acções), daí vem por consequência o serem duas causas naturais que determinam as acções: pensamento e carácter; e, nas acções [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de acções; e, por "mito", entendo a composição dos actos; por "carácter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão.
[...]
Porém, o elemento mais importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de acções e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na acção, e a própria finalidade da vida é uma acção, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao carácter, mas são bem ou mal-aventurados pelas acções que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efectuar certas acções; por isso, as acções e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.
[...]
Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma acção e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.
Aristóteles, Poética, 49 b / 50 b


Classificação de Frei Luís de Sousa
«Garrett disse na Memória ao Conservatório que o conteúdo do Frei Luís de Sousa tem todas as características de uma tragédia. No entanto, chama-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal da tragédia:
não é em verso, mas em prosa;
não tem cinco actos;
não respeita as unidades de tempo e de lugar;
não tem assunto antigo.
Sendo assim, quase podemos dizer que é uma tragédia, quanto ao assunto. Na verdade,
  1. o número de personagens é diminuto;
  2. Madalena, casando sem ter a certeza do seu estado livre, e Manuel de Sousa, incendiando o palácio, desafiam as prepotências divinas e humanas (a hibris);
  3. uma fatalidade ( a desonra de uma família, equivalente à morte moral), que o assistente vislumbra logo na primeira cena, cai gradualmente (climax) sobre Madalena, atingindo todas as restantes personagens (pathos);
  4. contra essa fatalidade os protagonistas não podem lutar (se pudessem e assim conseguissem mudar o rumo dos acontecimentos, a peça seria um drama); limitam-se a aguardar, impotentes e cheios de ansiedade, o desfecho que se afigura cada vez mais pavoroso;
  5. há um reconhecimento: a identificação do Romeiro (a agnorisis);
  6. Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma palavra de conforto, parecem o coro grego.
Mas, por outro lado, a peça está a transbordar de romantismo:
  1. a crença no sebastianismo;
  2. a crença no aparecimento dos mortos, em Telmo;
  3. a crença em agouros, em dias aziagos, em superstições;
  4. as visões de Maria, os seus sonhos, o seu idealismo patriótico;
  5. o «titanismo» de Manuel de Sousa incendiando a casa só para que os Governadores do Reino a não utilizassem;
  6. a atitude que Maria toma no final da peça ao insurgir-se contra a lei do matrimónio uno e indissolúvel, que força os pais à separação e lhos rouba.
Se a isto acrescentarmos certas características formais, como
  1. o uso da prosa;
  2. a divisão em três actos;
  3. o estilo todo, do princípio ao fim,
teremos que concluir que é um drama romântico, com lances de tragédia apenas no conteúdo
Barreiros, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. II

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