Marco Antônio de la Parra em POA
Entrevista com o dramaturgo chileno Marco Antonio de la Parra, autor do texto latino-americano mais encenado no mundo: A secreta obscenidade de cada dia, um diálogo imaginário entre Freud e Marx.
Um chileno com olhos de Chekhov
Durante oficina na Faap, Marco Antonio de la
Parra discorre sobre coisas ´aparentemente irrelevantes´, mas, para o
dramaturgo, é so ´teatralidade menor´
Entrevista
SÃO PAULO - Marco Antonio de
la Parra recebe a reportagem do Estado no saguão do Teatro Faap na terça-feira
seguinte ao fim de semana da estréia de sua peça O Continente Negro . Está ali
para ministrar uma oficina de dramaturgia. Permite que se acompanhe o segundo
dia de trabalho, mas avisa à repórter e ao fotógrafo: “Vocês podem entrar, mas
nenhuma palavra, silêncio.” E explica como será o trabalho.
Na véspera, o primeiro dos três dias de duração
da oficina, ele pedira a todos os participantes que escrevessem em folhas
separadas duas cenas distintas: uma bem banal, outra trágica. “Ações simples,
por exemplo, ela vai até a janela. Importante que sejam no presente e sem
identificação do autor, em letra de imprensa.” Ao fim do dia, os papéis foram
misturados. Cada um recebeu duas cenas diferentes, escritas por outros. O dever
de casa para o dia seguinte: trazer para a sala objetos variados para criar as
cenas recebidas. “Sem palavras, hoje quero apenas imagens. Amanhã será o dia de
juntar tudo. Aí teremos um pequeno festival de cenas curtas.”
Na sala já esperam alguns participantes, entre
eles Yara de Novaes e André Cortez, respectivamente atriz e cenógrafo de O
Continente Negro, e Fernanda Almeida, operadora de luz de BR3 do Teatro da
Vertigem. Mochilas, bolsas, um tripé de máquina fotográfica, gravadores,
bonecos, panos, muitos são os objetos espalhados.
Desde a primeira criação, justamente de
Fernanda, aparecem elementos como rituais, cânticos e velas. Essas vão aparecer
outras vezes, assim como crianças abandonadas ou violadas, corpos mutilados,
cidades congestionadas e violentas. “Em certas oficinas, além da cena banal e
trágica, peço um mito. Não pedi aqui e nem seria preciso - o elemento religioso
apareceu com força”, observou la Parra, ao fim do dia.
Houve uma tendência ao figurativo e uma
profusão de imagens. E você, claramente, pedia síntese e sugestão. É sempre
assim?
Houve uma tendência ao barroco. Isso varia. Na
Cidade do México, no primeiro dia foi terrível, muitas imagens, mas as sínteses,
no último dia, foram muito fortes. Na Argentina, são sintéticos nas imagens, mas
não nas palavras, o texto comanda. Em Monterrey, no México, dei uma oficina em
que a síntese predominou, mas porque havia muitos artistas de teatro de bonecos.
Na Espanha são tímidos, se soltam pouco. Eu prefiro que se soltem, sejam
barrocos, porque quando chegamos à síntese, ela é mais forte. Isso certamente
vai acontecer amanhã.
Havia ainda a dificuldade em mudar o
ponto de vista. Se um bonequinho era colocado sobre uma mesa, a tendência era
sempre olhá-lo de frente, por mais que você falasse: olhem por vários ângulos.
Sim, por exemplo, foi construída essa imensa
cidade, cheia de bonecos e ruas feitas de sal. Seria mais interessante tirar
todos os bonecos e apenas caminhar pelas ruas. Tentei, mas isso não aconteceu. É
difícil romper a Gestalt. Há mais um agravante. O material trabalhado aqui é
muito doloroso, porque pedi experiência pessoal. Apareceu muito abuso infantil,
perda de inocência, violência interconjugal. E o elemento religioso, muitas
velas.
Sempre que se trabalha sobre o pessoal,
a tendência é aparecer primeiro o mais óbvio, o senso comum. No entanto, o
trabalho artístico é justamente fugir dele, não?
Sim, mas há um momento em que temos de ver
quais lugares-comuns vamos visitar. Porque o trabalho artístico passa pelos
lugares-comuns. Não se pode evitar. É preciso reconhecê-los. Chekhov os
visitava. Em O Continente Negro, visito os lugares-comuns.
Escrevi trabalhando com três atores de
televisão muito conhecidos. Depois quis que os dirigisse uma mulher, porque é
uma obra muito feminina. Queríamos fazer realismo, mas não televisão. Então, o
primeiro trabalho foi cortar as cenas que a TV usaria. As dramáticas, as
intensas, aquelas que todo mundo entenderia o que estava acontecendo. E deixamos
as cenas de sobra, o que iria para o lixo. A peça é feita de pedaços de
telenovela. Faltam 50%. Sempre falta um pedaço. É uma obra muito psicanalítica.
Você é formado em psiquiatria,
não?
Sim. E nessa peça trabalho femininamente sobre
o que Lacan chama a falta, sobre o que está castrado. Os personagens falam de
amor, mas as cenas amorosas não estão. Eu poderia perfeitamente contar O
Continente Negro como uma telenovela, porque ela passa pelos lugares-comuns, só
que eles não estão ali. É uma obra fantasma. Em neurologia, sabe-se que se
amputam uma perna, o paciente segue sentindo a perna. Nessa peça, faltam
fragmentos que, no entanto, estão ali, como fantasmas. Tocamos, emocionalmente,
sobre o que está perdido. É também um peça feminina porque faz uma elipse sobre
as histórias. Contar direto é uma atitude masculina. As mulheres fazem elipses,
vêem os detalhes; nós, homens, nos desesperamos, e perdemos com isso. A mulher
vê de perfil, por isso ela sabe que está sendo olhada. Os homens, não.
No prefácio, você diz que a peça
tangencia clichês e, para escapar disso, deve ser encenada com teatralidade
menor. Pode explicar?
Uma interpretação sem primeiro plano, o que não
funciona no cinema. É anticinema. Trabalho como roteirista em televisão, ali
você tem de ser eficaz, é sabotador. O que chamo teatralidade menor são coisas
que não têm nenhuma importância, chekhovianamente falando, sem trama e sem
final. Isso é frase de Chekhov, sem trama e sem final, ele diz numa de suas
cartas. No teatro, posso trabalhar com cenas mínimas, sem clímax, sem desenlace.
Encontrou essa teatralidade menor na
montagem brasileira?
Descobri coisas na montagem de Aderbal
Freire-Filho, que é muito espetacular. Isso é supreendente. A peruana, da qual
gostei muito, foi feita numa sala vermelha, apenas 70 pessoas na platéia, três
portas, um piano muito suave. Aqui há guitarras, jazz, um vibrato distinto. Ao
mesmo tempo, Aderbal teve a capacidade de colocar em primeiro plano as ações
menores. Com toda a intensidade que o espetáculo tem, parece pequeno - as mesmas
pausas, a mesma delicadeza. O espetáculo gigantesco do mínimo. Gostei muito.
Você escreve peças, romances, roteiros,
artigos. Há um traço comum em sua criação?
Há uma linha muito forte que atravessa tudo - a
linha histórica. Tento contar a história política do Chile no século 20. Há
outra íntima, que é O Continente Negro . E há a linha louca. A Secreta
Obscenidade de Cada Dia , impossível encontro de Freud e Marx num banco de
praça, é uma dessas peças louquíssimas e a encenou Antônio Abujamra há 15 anos.
Há várias obras minhas totalmente demenciais. Uma peça de clowns, um sofá que
voa, um falso road movie policial cuja trama é totalmente estúpida. Tenho paixão
pelo teatro estúpido. Gosto de fazer comédias excessivas. É muito divertido.
Sobretudo para quem faz, não? Às vezes
mais do que para quem vê.
Claro, claro. A gente vai apurando a linguagem
assim. São exercícios delirantes. Eu tento me divertir escrevendo. Mas, é claro,
a ditadura me marcou a vida, sigo escrevendo sobre ela em ensaios, contos.
Ainda é um tema? No Brasil parece já
esgotado.
Para mim, não. Sou psiquiatra. E, como tal, me
tocaram muitas histórias. Atendi gente cuja vida foi profundamente tocada pela
ditadura. Atendi tanto ex-membros do partido comunista como da polícia política.
Isso mudou minha vida.
Você ainda atua como médico?
Sim, claro. Atendi pacientes que mataram para o
serviço secreto. Não há bons ou maus, todos mataram. O mal é um tema que
provavelmente vou desenvolver, de como posso me transformar num assassino. Tenho
lido muito Dostoievski. Talvez eu trabalhe sobre Fausto, do Thomas Mann.
Como você está vendo o surgimento de
novos políticos na América Latina, como Chávez?
É uma curiosidade. Todo o personagem sem uma
‘aurora' (aponta a testa) me dá medo. Prefiro o governo socialista mais pensado
do Chile. Nunca fui dogmático. Pouco antes do golpe, estava rompido com a
esquerda e a direita. Não tolero os dogmas, nem mesmo dos ecologistas. A gente
dogmática me põe de cabelos arrepiados. Meu teatro tende a ser um convite a
pensar, incluindo aí meus escritos sobre psicanálise, sobre literatura. Estou
sempre duvidando. Estou esperando que morra Fidel para que possa trabalhar com
essa complexa figura.
Por que esperando que morra?
Porque a revolução é tema complexo. O século 20
foi tão revolucionário que é desesperante. Não sobrou nada de todas as
revoluções. Da Rússia, só sobrou Chekhov.
Ele é anterior à revolução.
O mundo russo para mim é uma influência muito
importante. O que sucedeu com esse mundo? Outra influência importante é a
norte-americana, esse império romano. O que é esse império estranho? O século 20
é tão estranho.
Você foi muitas vezes a Cuba?
Fui apenas uma vez, por poucos dias. Tenho
pudor de fazer turismo num país que está vivendo uma situação complicada. Queria
ir como convidado, conhecer a situação.
Conhece o teatro brasileiro?
Não, muito pouco. A literatura conheço um pouco
mais. Machado de Assis é o meu favorito e fiquei muito atraído por Campos de
Carvalho. O Brasil é um mundo à parte. As ditaduras trataram de separar os
países da América. Há apenas cinco anos comecei a conhecer o teatro argentino,
que tem coisas fantásticas, a nova dramaturgia colombiana, a mexicana. Do Brasil
conheço pouco, não tenho uma opinião do panaroma. Conheço apenas a literatura
dramática consolidada, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos. Nada da nova
dramaturgia.
Na oficina, você disse que bonecos eram
bons atores porque seus corpos estão mortos e que os atores tinham de morrer
para ressuscitar?
Exatamente. Em oficinas mais longas, trabalho
muito sobre o corpo, um tema contemporâneo interessante. Agora mesmo no Brasil
vocês têm uma exposição com cadáveres trabalhados como material plástico. Esse
corpo que Orlan declarou obsoleto. É uma mulher que faz diversas operações
plásticas, ora para parecer a Mona Lisa, ora para ter um nariz maia. É louca,
mas interessante para pensar sobre essa visão em que as pessoas se operam assim
(estala dos dedos) só porque querem ter outro corpo. O corpo tem segredos, não
está dominado, não se pode mudá-lo como se troca de celular. Quando interfiro no
corpo, interfiro na mente. Aí estão as doenças psicosomáticas, doenças
auto-imunes, pessoas destruindo a si mesmas. Um mistério do conhecimento.
Mensagem corporal que não pôde ser transformada em linguagem. Um tema que me
fascina e que venho estudando muito.
Fonte: O estado de São
Paulo
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